"Não sou nada. Nunca serei nada. Não posso querer ser nada. À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo." Fernando Pessoa
terça-feira, 1 de outubro de 2013
Islamismo: Como surgiu a divisão entre sunitas e xiitas
Como surgiram as diferenças entre sunitas e xiitas e como a divisão entre os muçulmanos tornou-se uma ameaça à paz mundial
Texto: Eduardo Szklarz / Design: Villas | 08/08/2012 18h53
Em 12 de março deste ano, o líder religioso xiita Abdullah Dadou
morreu sufocado durante o incêndio de uma mesquita em Bruxelas, na
Bélgica. Ele tinha 46 anos e era pai de 4 filhos. Segundo as
autoridades, as chamas foram provocadas por um extremista sunita que
entrou no templo com uma faca, um machado e um galão de combustível.
Ataques desse tipo estão pipocando ao redor do mundo. Em junho, por
exemplo, a explosão de uma bomba no Paquistão matou 15 peregrinos xiitas
que voltavam de uma viagem ao Irã.
A violência entre grupos
xiitas e sunitas também deixou quase 200 mortos no Iraque. Nove deles
eram jogadores e torcedores que morreram com a detonação de um artefato
perto de um campo de futebol em Hilla, no sul do país. Todos os dias, a
violência sectária faz novas vítimas. Por trás de todas essas cifras
recentes, contudo, existe um conflito histórico que remonta às primeiras
gerações de muçulmanos. Tudo começou com uma desavença política, que
sofreu uma transformação gradual nos séculos seguintes. Os dois lados
adquiriram diferenças teológicas, colecionaram ressentimentos e hoje
protagonizam um confronto geopolítico. É o que você vai ver nesta
reportagem.
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O sucessor de Maomé
Para
entender a disputa entre xiitas e sunitas é preciso voltar ao século 7,
quando Maomé fundou o Islã. Segundo a tradição muçulmana, os seguidores
do Profeta deixaram a idolatria para seguir Alá, o deus único. Maomé
foi perseguido em Meca, sua cidade natal, e migrou para Medina – onde
fundou a primeira comunidade islâmica (a umma). Lá, tornou-se um líder
religioso, político e militar. E as revelações divinas feitas a ele
ficaram registradas no Corão, o livro sagrado dos muçulmanos.
Maomé
nunca deixou claro quem seria seu sucessor. Quando morreu, em 632, a
comunidade muçulmana tinha um belo abacaxi nas mãos. Como seria
escolhido o novo líder? Que funções ele teria? Quanto duraria o mandato?
Assim, surgiram dois grupos antagônicos. “O primeiro, minoritário,
preferia reservar a honra da linhagem profética à família de Maomé. Seu
pretendente era Ali ibn Abi Talib, genro do Profeta, casado com sua
filha Fátima”, diz o historiador Peter Demant, autor de O Mundo
Muçulmano. “Para a segunda corrente, porém, qualquer fiel poderia ser
candidato, desde que fosse aceito por consenso pela comunidade.”
O
grupo menor formava o Shiat Ali, ou “partido de Ali”. Seus seguidores
ficaram conhecidos como xiitas. A facção majoritária foi chamada de
sunita (do termo Ahl al Sunna, “o povo da tradição”). Em meio à
emergência de escolher um novo líder, o círculo íntimo dos seguidores do
Profeta elegeu Abu Bakr, velho companheiro de Maomé. Abu Bakr usou o
título de califa (khalifa khalifa), uma palavra árabe que combina as
ideias de sucessor e representante. Os sunitas aplaudiram a escolha, mas
o xiitas protestaram: eles
insistiam que Ali era o candidato legítimo.
Pouco
antes de morrer, em 634, Abu Bakr apontou Umar ibn Al-Khatab como seu
sucessor. As tropas de Umar expandiram o domínio do Islã pela península
arábica, Egito, Síria, Palestina, Mesopotâmia e parte do Cáucaso. Em seu
leito de morte, Umar nomeou um conselho para decidir quem seria o
terceiro califa. E o escolhido foi Uthman ibn Affan, membro de uma
família grã-fina de Umaya, em Meca. Uthman derrotou a Pérsia e ampliou
ainda mais os domínios do califado, mas os conflitos internos minaram
seu governo. As tribos nômades o identificavam com os privilégios dos
aristocratas que Maomé havia combatido. A crise desbancou para uma
guerra civil e rebeldes muçulmanos assassinaram Uthman em 656, abrindo
espaço para que Ali – o preferido dos xiitas – se tornasse califa.
“Quando Ali finalmente assumiu, as divisões eram profundas demais para
que ele conseguisse impor sua autoridade”, diz Demant. Ali foi morto 5
anos depois – também pelas mãos de um opositor. Os xiitas apoiaram a
posse de Hassan, filho de Ali, mas o jovem cedeu ante a oposição de
Muawiya ibn Abu Sufyan, governador da Síria. Muawiya fundou então a
primeira dinastia de califas: a dos omíadas, sunitas. Os sunitas
reconheceram o reinado dos 4 primeiros califas – os Reshidun (“os
retamente justos”). Para os xiitas só o reinado de Ali foi legítimo
A mutação do conflito
Nos
séculos seguintes, a divisão passou a incluir também agravos e
diferenças teológicas. E essas mudanças começaram a tomar forma em 680.
Foi quando Hussein, filho caçula de Ali e neto de Maomé, comandou uma
rebelião xiita para impedir que o califa omíada Yazid assumisse o trono.
Hussein foi degolado e seus aliados acabaram mortos na Batalha de
Karbala, no atual Iraque. “O tratamento dado a Hussein motivou
ressentimentos entre os xiitas. A celebração de seu assassinato durante a
Ashura (o décimo dia do mês de Muharran) se tornou um período emotivo
no qual a comunidade xiita compartilha seu sofrimento”, diz Yvonne
Haddad, professora de História do Islã na Universidade de Georgetown.
A
tragédia também ajuda a entender por que os xiitas valorizam tanto a
noção de martírio. Segundo Haddad, a principal distinção entre os grupos
vem de sua visão de mundo. Sunitas acreditam que o Corão é a palavra
eterna de Deus que coexistia com Ele antes da Criação. Já para os
xiitas, o Corão foi criado no tempo e passou a existir quando Deus se
revelou à humanidade. Isso faz toda a diferença na maneira como eles
leem o livro sagrado. “Xiitas consideram que precisam ser guiados para
interpretar o Corão na vida diária, pois o livro depende da época e do
lugar. Assim, precisam um imã (líder religioso) para ajudá-los a
entender a mensagem do Corão”, diz Haddad. “Os sunitas, por sua vez,
acreditam que a palavra de Deus é a mesma e vale para qualquer tempo e
lugar. Portanto, as opiniões dos clérigos sunitas não são tomadas muito
seriamente. E aqueles que clamam por um retorno às interpretações
originais são levados muito a sério. Sunitas tendem a ser mais
doutrinários.”
Os dois grupos também seguem diferentes coleções
de Hadith, as narrativas sobre atos e palavras do Profeta. Isso porque
cada lado confia em narradores diferentes. Sunitas preferem aqueles que
eram próximos de Abu Bakr, enquanto os xiitas confiam nos que pertenciam
ao grupo de Ali. Aisha, por exemplo, é considerada uma fonte importante
pelos sunitas e desprezada pelos xiitas por ter lutado contra Ali.
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Aqui é possível fazer uma comparação com o cisma cristão, pois ele também deriva de um embate sobre a autoridade religiosa.
Católicos
defendiam que a Igreja tinha o poder de definir o que é o cristianismo,
enquanto os protestantes deixavam essa decisão na mão dos indivíduos.
No caso do cisma muçulmano, a discussão é um pouco diferente. Sunitas
creem que a autoridade está calcada na tradição, isto é, nas práticas do
Profeta e de seu círculo íntimo tal como eles a definiram.
Já
para os xiitas a autoridade está nas “fontes de emulação” – os líderes
supremos da hierarquia religiosa xiita, como os aiatolás. Sunitas também
consideram que o imã é simplesmente a pessoa que lidera a congregação,
como o pastor dos cristãos. Já para os xiitas, o termo Imã (com letra
maiúscula) assumiu um significado totalmente diferente. Ele se refere
aos verdadeiros sucessores espirituais do Profeta Maomé, começando por
Ali. Os xiitas veem os Imãs como uma espécie de santos – o que para
muitos sunitas é uma verdadeira heresia.
Além disso, os xiitas
cultivam uma expectativa messiânica sobre a vinda do Mahdi (Redentor), o
que não se observa tanto na outra corrente. Ou seja: os sunitas são
ancorados no passado, ao passo que os xiitas são mais experimentadores e
olham mais para o futuro. O título de aiatolá, aliás, é bastante
recente. E – veja só que ironia – acaba reproduzindo no Islã xiita a
estrutura do clero cristão. “Os líderes do Irã já dotaram seu país dos
equivalentes de um pontificado, de um colégio de cardeais, um conselho
de bispos e, principalmente, de uma inquisição, coisas que eram todas
alheias ao Islã”, diz o historiador britânico Bernard Lewis, da
Universidade de Princeton, EUA. “É possível que acabem provocando uma
Reforma.”
Assassinos: os avós dos terroristas
O
martírio é uma noção fundamental entre as seitas xiitas. Mas nenhuma
delas levou a ideia tão a sério quanto a Ordem dos Assassinos, que
espalhou o terror na Pérsia e na Síria nos séculos 11 e 12. Seus
integrantes eliminavam gente graúda: monarcas, ministros, generais e
religiosos – do bando rival, claro. “O inimigo era o sistema político,
militar e religioso sunita. Os assassinatos eram planejados para
aterrorizá-lo, enfraquecê-lo e, finalmente, derrubá-lo”, diz o
historiador Bernard Lewis no livro “Os Assassinos”. Executar a vítima
significava um ato de devoção e envolvia um belo ritual. Segundo os
relatos do explorador Marco Polo, que esteve na Pérsia em 1273, os
chefes da seita ofereciam haxixe aos jovens convocados para matar – daí o
nome Haxaxin, que depois derivou para Assassinos. A droga lhes dava um
gostinho antecipado das delícias do Paraíso.
É que nenhum deles
esperava sair vivo da missão. “Depois de matar, os Assassinos não
tentavam fugir nem cometiam suicídio. Eles esperavam morrer na mão dos
inimigos”, diz Lewis. Sempre usavam a adaga em vez de veneno ou armas de
arremesso, o que tornava a operação muito mais arriscada. Atacavam em
mesquitas, mercados ou palácios, agiam sob absoluto sigilo e muitos se
vestiam de mulher para garantir o sucesso da emboscada. O fundador da
seita teria sido o persa Hassan i-Sabah, conhecido como Velho da
Montanha. Ele teria recrutado os primeiros Assassinos depois de se
converter ao ramo ismaelita do xiismo no século 11 – época em que o
Oriente Médio foi invadido pelos cruzados.
Disputa virou geopolítica
Atualmente,
os sunitas representam cerca de 90% do Islã e os xiitas, 10%. A velha
rixa é travada por governos cujos interesses vão além da tradição
religiosa. “O que vemos hoje é um conflito geopolítico”, diz o escritor
Reza Aslan, especialista em história do Islã. Para ele, há dois polos de
influência no mundo islâmico: Arábia Saudita (sunita) e Irã (xiita).
“Vemos diversos grupos fundamentalistas, como o sunita Al Qaeda, que
acusa os xiitas de infiéis. Mas de onde vem a Al Qaeda? Da Arábia
Saudita, que enxerga o Irã como a principal ameaça”, diz .
O
conflito é alimentado com o dinheiro do petróleo. O Irã patrocina grupos
terroristas xiitas, como o libanês Hezbollah. A monarquia saudita
fomenta uma versão extremista sunita, o wahhabismo, ensinado em escolas e
mesquitas ao redor do mundo. “O wahhabismo exerce uma influência
tremenda sobre a diáspora muçulmana”, diz Lewis. “Em países
não-islâmicos não existe controle sobre o que é ensinado nessas escolas.
Há um ensino muito mais extremo em colégios muçulmanos da Europa e da
América que na maioria dos países islâmicos.”
O Iraque virou
palco perfeito para o embate entre os polos muçulmanos. Desde a retirada
das tropas americanas do país, em dezembro, a violência sectária
explodiu com atentados quase diários. A maioria xiita deseja vingar as
atrocidades do ditador Saddam Hussein, um sunita. O Irã apoia as
milícias xiitas. Os sauditas e a Al Qaeda atuam no campo rival. A
dinâmica se repete pelo Oriente Médio. No Barein, por exemplo, a maioria
xiita se rebela contra rei Hamad, que é sunita. Na Síria, principal
aliada do Irã, a Primavera Árabe motivou uma rebelião contra o regime
alauíta, da minoria xiita.
Segundo as Nações Unidas, os
confrontos já produziram mais de 9 mil mortos no país. Isso não
significa que o conflito seja mais violento hoje. Nos primeiros séculos
do Islã, houve guerras massivas. “Nos séculos 7 e 8, os omíadas
construíram um império sunita. E quem não fosse sunita era massacrado”,
diz Aslan. “No século 8, os abássidas assumiram o poder. Eles descendiam
de Maomé através de Fátima (filha do Profeta e mulher de Ali). Eram
xiitas. E seu império massacrou sunitas.”
Livro
O Oriente Médio, Bernard Lewis, Jorge Zahar, 1996
Fonte: http://guiadoestudante.abril.com.br/aventuras-historia/confira-como-surgiu-divisao-sunitas-xiitas-696521.shtml
quinta-feira, 19 de setembro de 2013
A Peste Negra
O século XIV na Europa Ocidental foi uma época de horror. A Peste, as guerras, as revoltas, a fome, o Cisma do Ocidente, os questionamentos ao poder da Igreja, tudo parecia concorrer para o que muitos que viveram nesse século temiam: o fim dos tempo...
Abaixo, um documentário sobre esse período que foi um dos responsáveis pelo título incorreto de Idade das Trevas que a Idade Média recebeu.
Abaixo, um impressionante relato de um religioso português do século XVII sobre os efeitos da Peste nas pessoas e na sociedade.
A peste é, sem nenhuma dúvida, entre todas calamidades desta vida, a mais cruel e verdadeiramente a mais atroz. É com grande razão que é chamada por antonomásia* de o Mal. Pois não há sobre a terra nenhum mal que seja comparável e semelhante à peste. Desde que acende num reino ou numa república esse fogo violento e impetuoso, veem-se os magistrados atordoados, as populações apavoradas, o governo político desarticulado. A justiça não é mais obedecida; os ofícios param; as famílias perdem a sua coerência e as ruas a sua animação. Tudo fica reduzido a uma extrema confusão. Tudo é ruína. Pois tudo é atingido e revirado pelo peso e pela grandeza de uma calamidade tão horrível. As pessoas, sem distinção de estado ou de fortuna, afogam-se numa tristeza mortal. Sofrendo, umas da doença, as outras do medo, são confrontadas a cada passo ou com a morte, ou com o perigo. Aqueles que ontem enterravam, hoje são enterrados e, por vezes, por cima dos mortos que na véspera haviam posto na terra.
Os homens temem até o ar que respiram. Têm medo dos defuntos, dos vivos e de si mesmos, pois que a morte muitas vezes envolve-se nas roupas com que se cobrem e que à maioria servem de mortalha, em razão da rapidez do desfecho [...].
As ruas, as praças, as igrejas cobertas de cadáveres apresentam aos olhos um espetáculo pungente, cuja visão torna os vivos invejosos da sorte daqueles que já estão mortos. Os locais habitados parecem transformados em desertos e, por si só, essa solidão inusitada aumenta o medo e o desespero. Recusa-se qualquer piedade aos amigos, já que toda piedade é perigosa. Estamos todos na mesma situação, mal se tem compaixão uns dos outros.
Estando sufocadas ou esquecidas, em meio aos horrores de tão grande confusão, todas as leis do amor e da natureza, as crianças são subitamente separadas dos pais, as mulheres dos maridos, os irmãos ou os amigos uns dos outros - ausência desoladora de pessoas que são deixadas vivas e que não se voltará a ver. Os homens, perdendo sua coragem natural e não sabendo mais que conselho seguir, vão como cegos desesperados que tropeçam a cada passo em seu medo e suas contradições. As mulheres, com seus choros e suas lamentações, aumentam a confusão e a aflição, pedindo um remédio contra um mal que não conhece nenhum. As crianças vertem lágrimas inocentes, pois sentem a desgraça sem compreendê-la.
Fonte: Jean Delumeau. História do Medo no Ocidente 1300-1800. p 121-122.
*Antonomásia: Figura que consiste na substituição do nome próprio de uma pessoa,
cidade, país, pelo de uma sua qualidade ou por uma perífrase que
concentre um dos seus atributos: o príncipe dos poetas (por Camões), o
Redentor (por Jesus Cristo).
Alcunha, apelido, cognome.
Alcunha, apelido, cognome.
terça-feira, 27 de agosto de 2013
terça-feira, 16 de abril de 2013
O bandeirismo em vídeo.
No início do ano 2000, a rede globo levou ao ar a minissérie A Muralha, que contava a história dos paulistas nos séculos XVII e XVIII. Foi uma atração de grande sucesso. Abaixo, selecionei dois vídeos do primeiro capítulo que ajudam a ilustrar quem eram os bandeirantes, quais os seus objetivos e o seu modo de vida.
Lembrem-se que se trata de uma obra de ficção, e que, por isso, não há necessariamente fidelidade histórica em todos os detalhes.
Mudou a imagem dos Bandeirantes.
O Bandeirante ideal
APARÊNCIA MAJESTOSA
O bandeirante aparece como homem imponente e altivo, de olhar severo. A inspiração são as representações majestosas dos quadros de Rigaud, pintor que se consagrou representando o rei francês Luís XIV.
PELE CLARA
Os dois sertanistas do quadro de Benedito Calixto são brancos, traços tipicamente europeus. A cor também remete à elite paulista, que no início do século passado quis se associar à imagem dos desbravadores.
FÍSICO ROBUSTO
O retrato mostra um desbravador opulento, forma pouco provável para um homem que se embrenhava na selva. A silhueta avantajada se justifica porque essa é a representação típica dos ricos da época.
TRAJE DE GALA
Impecavelmente alinhados, o chapéu, a baeta (manta), a calça, a camisa e as botas eram um vestuário urbano, geralmente utilizado em festas religiosas - jamais durante expedições no meio da mata.
PAISAGEM FANTÁSTICA
A mata aberta é uma licença poética do pintor para mostrar a serra onde ficava o Quilombo dos Palmares, reduto de escravos fugidos que o bandeirante Domingos Jorge Velho dizimou numa expedição.
ARMAS DA BATALHA
A faca do quadro é muito fina, inadequada para a tarefa de cortar as folhas e abrir caminho na mata fechada. A arma de fogo, um arcabuz, é uma das poucas coisas que correspondem à realidade.
O SUBALTERNO
Com a intenção de destacar ainda mais a figura de Domingos Jorge Velho, o pintor aparece atrás do sertanista. Como o líder da bandeira, ele também tem pele de cor clara.
O bandeirante aparece como homem imponente e altivo, de olhar severo. A inspiração são as representações majestosas dos quadros de Rigaud, pintor que se consagrou representando o rei francês Luís XIV.
PELE CLARA
Os dois sertanistas do quadro de Benedito Calixto são brancos, traços tipicamente europeus. A cor também remete à elite paulista, que no início do século passado quis se associar à imagem dos desbravadores.
FÍSICO ROBUSTO
O retrato mostra um desbravador opulento, forma pouco provável para um homem que se embrenhava na selva. A silhueta avantajada se justifica porque essa é a representação típica dos ricos da época.
TRAJE DE GALA
Impecavelmente alinhados, o chapéu, a baeta (manta), a calça, a camisa e as botas eram um vestuário urbano, geralmente utilizado em festas religiosas - jamais durante expedições no meio da mata.
PAISAGEM FANTÁSTICA
A mata aberta é uma licença poética do pintor para mostrar a serra onde ficava o Quilombo dos Palmares, reduto de escravos fugidos que o bandeirante Domingos Jorge Velho dizimou numa expedição.
ARMAS DA BATALHA
A faca do quadro é muito fina, inadequada para a tarefa de cortar as folhas e abrir caminho na mata fechada. A arma de fogo, um arcabuz, é uma das poucas coisas que correspondem à realidade.
O SUBALTERNO
Com a intenção de destacar ainda mais a figura de Domingos Jorge Velho, o pintor aparece atrás do sertanista. Como o líder da bandeira, ele também tem pele de cor clara.
O BANDEIRANTE REAL.
NOSSA RECRIAÇÃO A ilustração retrata os sertanistas segundo a descrição de documentos históricos. Ilustração: Éber Evangelista |
QUADRO CLÁSSICO Domingos Jorge Velho e o Loco-tenente Antônio Fernandes Abreu, de 1903, é idealização do pintor. Reprodução Hélio Nobre
APARÊNCIA CANSADA
Aqui, o bandeirante surge sem a imponência forçada retratada por Benedito Calixto. Ao contrário: na casa dos 60 anos e desgastado pelas expedições e combates na mata, parece cansado e abatido.
PELE MORENA
Documentos indicam que os sertanistas eram produto da mestiçagem - a maioria deles era de mamelucos. Por isso, a ilustração mostra uma pele morena, com traços indígenas e envelhecida pelo sol.
FÍSICO RAQUÍTICO
Nada de gorduras corporais: acostumados a longas caminhadas, os bandeirantes eram magros. Em alguns casos, quase desnutridos: na selva, comiam pouco e, não raro, passavam fome.
ROUPA VELHA
Botas eram artigo de luxo: os desbravadores andavam descalços, usavando chapéu e colete de couro de anta para se protegerem das flechas. Colares e penas índigenas se misturavam a crucifixos.
PAISAGEM DRAMÁTICA
A visão mais comum para os desbravadores era um mar de árvores, que tinha de ser aberto a golpes de facão. Além disso, os expedicionários ficavam sujeitos a todas as dificuldades e perigos da vida selvagem.
AS ARMAS DA BATALHA
Apesar de usarem arma de fogo e escudo, os bandeirantes incorporaram influências dos nativos no armamento. Por serem simples de construir e muito eficazes, arco e flecha eram muito presentes.
O COMPANHEIRO
O índio - que, além de mostrar os caminhos, era o responsável pela alimentação - aparece aqui ao lado do bandeirante, reforçando a idéia de parceria que nem sempre é mencionada nos livros didáticos.
Fonte aqui.
APARÊNCIA CANSADA
Aqui, o bandeirante surge sem a imponência forçada retratada por Benedito Calixto. Ao contrário: na casa dos 60 anos e desgastado pelas expedições e combates na mata, parece cansado e abatido.
PELE MORENA
Documentos indicam que os sertanistas eram produto da mestiçagem - a maioria deles era de mamelucos. Por isso, a ilustração mostra uma pele morena, com traços indígenas e envelhecida pelo sol.
FÍSICO RAQUÍTICO
Nada de gorduras corporais: acostumados a longas caminhadas, os bandeirantes eram magros. Em alguns casos, quase desnutridos: na selva, comiam pouco e, não raro, passavam fome.
ROUPA VELHA
Botas eram artigo de luxo: os desbravadores andavam descalços, usavando chapéu e colete de couro de anta para se protegerem das flechas. Colares e penas índigenas se misturavam a crucifixos.
PAISAGEM DRAMÁTICA
A visão mais comum para os desbravadores era um mar de árvores, que tinha de ser aberto a golpes de facão. Além disso, os expedicionários ficavam sujeitos a todas as dificuldades e perigos da vida selvagem.
AS ARMAS DA BATALHA
Apesar de usarem arma de fogo e escudo, os bandeirantes incorporaram influências dos nativos no armamento. Por serem simples de construir e muito eficazes, arco e flecha eram muito presentes.
O COMPANHEIRO
O índio - que, além de mostrar os caminhos, era o responsável pela alimentação - aparece aqui ao lado do bandeirante, reforçando a idéia de parceria que nem sempre é mencionada nos livros didáticos.
Fonte aqui.
O Movimento Bandeirante
QUADRO CLÁSSICO Domingos Jorge Velho e o Loco-tenente Antônio Fernandes Abreu, de 1903, é idealização do pintor Benedito Calixto. |
Um herói. É esse o modelo que transpira da pose altiva, do olhar
penetrante, das armas novas e da roupa impecável do bandeirante Domingos
Jorge Velho, retratado por Benedito Calixto na pintura que inicia esse post. Mas o desbravador não era branco, e sim mameluco, fruto da
mestiçagem entre portugueses e índios. Usava tão bem o arcabuz, sua arma
de fogo, quanto o arco e a flecha, que aprendeu a manusear com os
nativos. Falava mais tupi do que português, como a maioria dos
paulistas. E ainda tinha sete esposas índias.
"Muitas vezes, encontrei nas obras escolares o mesmo tom triunfalista
da pintura de Calixto, com os bandeirantes aparecendo como indivíduos
corajosos e patrióticos, que tinham como objetivo expandir o território
nacional. Esse tipo de ocorrência diminuiu na produção dos últimos 20
anos, mas ainda existe", explica Manuel Pacheco Neto, autor de duas teses sobre os bandeirantes.
Nas últimas duas décadas, a análise cuidadosa dos registros de época
ajudou a contar outra versão dos fatos. Já há consenso entre os
historiadores, por exemplo, sobre os objetivos principais das bandeiras
dos séculos 17 e 18. Longe de buscar conscientemente a ampliação do
território em nome de um suposto nacionalismo, o que os desbravadores
tinham como meta era buscar metais preciosos e aprisionar índios. Depois
de capturados, os nativos eram vendidos para trabalhar nos canaviais do
Nordeste ou usados como mão-de-obra particular dos paulistas. No seu
encalço, os sertanistas andavam enormes distâncias mata adentro - Raposo
Tavares, por exemplo, percorreu 12 mil quilômetros durante três anos.
Isso tudo seria impossível se os bandeirantes não tivessem a ajuda dos índios, que acompanhavam os paulistas em suas andanças ou até colaboravam na captura de membros de suas próprias tribos (é importante ressaltar esse fato como exemplo de que personagens históricos são figuras complexas e até contraditórias, traços que acabam escondidos quando se ensina História por generalizações). Foram os indígenas que guiaram os sertanistas pelas trilhas desconhecidas e os ensinaram a andar descalços. "Eles mostraram uma pisada específica que evitava lesões e possibilitava percorrer distâncias maiores. A própria descoberta de ouro em Cuiabá foi feita não por bandeirantes, mas por dois índios coletores de mel", explica Pacheco Neto.
Objetivos X conseqüências
Isso tudo seria impossível se os bandeirantes não tivessem a ajuda dos índios, que acompanhavam os paulistas em suas andanças ou até colaboravam na captura de membros de suas próprias tribos (é importante ressaltar esse fato como exemplo de que personagens históricos são figuras complexas e até contraditórias, traços que acabam escondidos quando se ensina História por generalizações). Foram os indígenas que guiaram os sertanistas pelas trilhas desconhecidas e os ensinaram a andar descalços. "Eles mostraram uma pisada específica que evitava lesões e possibilitava percorrer distâncias maiores. A própria descoberta de ouro em Cuiabá foi feita não por bandeirantes, mas por dois índios coletores de mel", explica Pacheco Neto.
Objetivos X conseqüências
Com
viagens tão longas, era quase inevitável que os sertanistas acabassem
aumentando o território da colônia ao desrespeitar o Tratado de
Tordesilhas, acordo firmado por Portugal e Espanha em 1494 para
delimitar a extensão de terras que cabia a cada país. "Os sertanistas
contribuíram, sim, para o estabelecimento das dimensões territoriais do
Brasil atual, mas foram movidos pelo desejo de sobrevivência. Como
naquela época a ocupação dava o direito sobre a terra, os bandeirantes
acabaram fazendo um favor a Portugal mesmo sem ter esse intuito", diz o
historiador John Monteiro, da Universidade Estadual de Campinas.
A revisão histórica também jogou luz sobre a brutalidade dos
desbravadores. A visão vem sobretudo dos registros históricos feitos por
jesuítas que assistiram as matanças. Os religiosos relatam que, quando
chegavam ao seu destino - geralmente, missões jesuíticas apinhadas de
índios -, os sertanistas faziam ataques-surpresa e matavam uma enorme
quantidade de indígenas apenas para causar terror e evitar que os
remanescentes resistissem. Decapitações e esquartejamentos eram
estratégias comuns. O jesuíta Antonio Ruiz de Montoya descreveu com
horror uma dessas invasões: "(Eles) entraram a som de caixa e em ordem
militar nas duas reduções de Santo Antônio e São Miguel, destroçando
índios a machadadas. Os pobres dos índios com isso se refugiaram na
igreja, onde os matavam - como no matadouro se matam vacas -, tomaram
por despojo as modestas alfaias litúrgicas e chegaram mesmo a derramar
os santos óleos pelo chão".
Relativizar os rótulos
Por
mais que a narrativa seja chocante, é papel do professor relativizá-la,
mostrando como ela está impregnada da emoção típica do testemunho em
primeira pessoa e do interesse dos jesuítas em demonizar os sertanistas,
apesar de alguns religiosos terem até participado de bandeiras. A visão
crítica da História nos ensina que não devemos julgar nem bandeirantes
nem jesuítas pelos parâmetros de hoje, mas entendê-los como indivíduos
sujeitos às condições de sua época. Encarar esses personagens como
mocinhos ou vilões rouba-lhes a verdade histórica e a única riqueza que
talvez tenham conquistado - já que, segundo os testamentos da época,
comprovou-se que a maioria morreu pobre : a de ter lutado por interesses
próprios e, por acaso, ajudado a traçar a história de um país.
Ilustração: Éber Evangelista |
As bandeiras que mais impactaram a história foram as que alargaram o
território brasileiro, apresaram uma quantidade significativa de índios
ou descobriram ouro - essas últimas responsáveis pelo deslocamento de
grupos que se concentravam no litoral. A maioria foi fruto de ações
particulares, não apoiadas pela coroa portuguesa. No mapa à esquerda,
estão representadas oito grandes bandeiras, todas realizadas nos séculos
17 e 18. Em termos de distância percorrida, a mais impressionante foi a
liderada por Antonio Raposo Tavares (no mapa, em vermelho), que de 1648
a 1651 percorreu 12 mil quilômetros de São Paulo à região de Gurupá, no
atual Pará, para capturar indígenas. Tavares, aliás, foi provavelmente o
bandeirante mais experiente. Entre 1628 e 1633, ele comandou, junto com
Manuel Preto, uma incursão no atual Paraná (em rosa) para destruir
missões jesuíticas em Guairá. Com o mesmo objetivo de capturar índios,
Fernão Dias se embrenhou pelo atual Rio Grande do Sul, em direção a Tape
(bandeiras ilustradas em azul e verde).
Fonte aqui.
sábado, 23 de março de 2013
sexta-feira, 22 de março de 2013
Franceses se instalaram na Guanabara em 1555, mas diferenças religiosas enfraqueceram a empreitada |
Onde estava, afinal, o testamento no qual o “Pai Adão” legara o mundo às
Coroas portuguesa e espanhola? Quem fez esta pergunta foi Francisco I
(1494-1547), rei da França, que desafiou o Tratado de Tordesilhas,
firmado em 1494 por Portugal e Espanha para assegurar o domínio ibérico
sobre as terras do Novo Mundo. O monarca respondeu ao Tratado com uma
provocação, declarando a política de mare liberum (em latim, “mar
livre”). Como resultado, navios de comerciantes franceses percorreram o
litoral brasileiro em meados do século XVI, criando bases de comércio ao
longo da costa. Uma delas deu origem à colônia França Antártica, em
1555, situada na Baía de Guanabara, e assim batizada devido à crença de
que se localizava perto do polo antártico. Doze anos depois, após um
intenso combate, os portugueses conquistaram definitivamente a cidade do
Rio de Janeiro.
As forças portuguesas vitoriosas foram comandadas pelo governador-geral Mem de Sá (1500-1572), que, como o padre José de Anchieta (1534-1597), descreveu a colônia francesa como um ninho de hereges, composto exclusivamente de seguidores da Reforma Protestante. Diziam ainda que tinham sido encontrados livros sobre o protestantismo nas fortificações. Dessa forma, o combate ganhava ares de luta contra a heresia reformada, tornando-se meritório aos olhos de Deus e da comunidade católica. Mais que uma disputa territorial, a expulsão dos franceses se tornava uma guerra santa.
Esses relatos portugueses foram usados mais tarde pelo historiador Francisco Adolfo Varnhagen (1816-1878) na elaboração de sua obra História do Brasil, escrita no século XIX. A ideia de uma França Antártica formada exclusivamente por protestantes foi confirmada pelo autor e propagada entre diversos historiadores brasileiros. Mas as narrativas francesas sobre o episódio mostram o contrário: a colônia abrigava diferentes tendências religiosas, e essa variedade causara conflitos internos que dividiram a comunidade. De fato, na Europa a Reforma protestante revolucionava a experiência religiosa em diversas terras e gerava grandes oposições. No âmbito francês, destacava-se a liderança de João Calvino (1509-1564), exilado em Genebra, de onde exercia grande influência, principalmente teológica, sendo suas intervenções no campo político pouco significativas.
A versão dos derrotados diz que, em 1555, o monarca francês Henrique II (1519-1559) concedeu ao experiente militar Nicolas Durand de Villegagnon (1510-1572) a elevada quantia de dez mil libras tornesas para conduzir uma esquadra da França ao Brasil. Nascido em família de nobreza recente, Villegagnon tornou-se cavaleiro da Ordem de Malta, organização militar e religiosa fundada no tempo das Cruzadas. Após uma longa ascensão social, ocupou o posto de vice-almirante da Bretanha.
Os adversários protestantes de Villegagnon diriam mais tarde que o cavaleiro tinha se convertido à Reforma e desejava fundar um refúgio no Novo Mundo, onde seria possível “melhor servir a Deus”. De acordo com essa ideia, Villegagnon teria aderido ao protestantismo e depois traído a religião. Mas ao partir da Europa, sua companhia não deixava perceber nenhuma predileção religiosa. A bordo estavam o piloto adepto da Reforma Nicolas Barré (? –1562) e o cosmógrafo franciscano André Thévet (1504-1592).
Após meses de viagem, em março de 1556 os navios franceses comandados por Villegagnon chegaram à Guanabara. Os viajantes ocuparam a ilha de Serigipe, iniciando a construção do Forte Coligny, assim batizado em homenagem a Gaspar de Coligny (1519-1572), almirante de França e um dos incentivadores do projeto.
Segundo os primeiros relatos de Thévet e Barré, publicados em1557 na Europa, o convívio entre católicos e protestantes foi inicialmente pacífico. A relação amistosa com os índios tupinambás também foi fundamental para a consolidação da colônia. Os nativos forneciam alimentos e água aos franceses, pois a ilha de Serigipe, escolhida por razões puramente militares, não possuía fonte de água doce. Em troca, os indígenas obtinham mercadorias europeias, especialmente instrumentos de ferro.
A comunicação com os índios era feita pelos trugimães, franceses que conviviam com os indígenas havia anos, tendo aprendido sua língua e seus hábitos. Mas em pouco tempo esses intérpretes entrariam em conflito com os novos colonos. Villegagnon exigiu que todos os homens que desejassem manter relações sexuais com as índias se casassem com elas. Os trugimães, que viviam na terra em contato com as mulheres nativas havia muito tempo, foram contra. Fez-se um complô contra os chefes da colônia para matá-los, mas o plano foi descoberto a tempo, permitindo a captura dos organizadores do motim e a morte dos líderes.
Os meses seguintes de 1556 transcorreram sem sobressaltos, mas em março de 1557, uma comitiva de adeptos da Reforma, liderada pelo nobre Du Pont e por dois pastores, Pierre Richer e Guillaume Chartier, chegou à Guanabara vinda de Genebra. Eram convidados do almirante francês Gaspar de Coligny, que se convertera ao protestantismo. A iniciativa foi orientada pelo líder reformador João Calvino. Entre os recém-chegados também estava o huguenote Jean de Léry (1534-1611), que, após retornar à Europa, escreveu o relato História de uma viagem feita à Terra do Brasil, uma das mais importantes obras sobre a França Antártica.
Inicialmente, o relacionamento entre o chefe da colônia e a comitiva de Du Pont foi amistoso, segundo as cartas de Villegagnon e dos pastores a Calvino. Porém, menos de um mês após a chegada dos protestantes, surgiu um conflito relacionado à celebração do culto de Páscoa. Para os católicos, o pão se transformava realmente no corpo de Cristo durante o ritual, enquanto para os protestantes seria apenas um símbolo da presença do filho de Deus. Para Villegagnon, a comunhão era uma das bases do poder real, e a negação da presença do corpo de Cristo abalava as bases em que a monarquia se apoiava.
Num primeiro momento, os grupos em litígio tentaram chegar a um acordo. O pastor Guillaume Chartier foi enviado de volta à Europa para consultar Calvino sobre o tema. Mas os debates não se resolviam, e a divergência religiosa foi tamanha que no fim de 1557 a comitiva de Genebra retornou à Europa. Contudo, o navio começou a afundar quando estava ainda na altura de Cabo Frio, e cinco genebrinos resolveram voltar de bote. Os náufragos foram recebidos por Villegagnon, que executou três por afogamento poucos dias depois. Segundo Jean Crespin (1523-1572), célebre editor militante reformado, autor de importante martirológio protestante, os três eram mártires da causa reformada, condenados por razões religiosas. Mas para o cavaleiro de Malta, os ditos “mártires” teriam provocado tumultos, incitando os colonos à insurreição e, dessa forma, sua condenação se dava exclusivamente por motivos civis.
O resto da comitiva seguiu para a Europa num navio em condições precárias. Segundo Jean de Léry, a viagem se prolongou além do esperado e os viajantes foram obrigados a devorar os macacos e papagaios que transportavam e, em seguida, os ratos. Por fim, hidrataram e comeram seus utensílios de couro. Muitos morreram de fome ao longo da tormentosa travessia. De acordo com Léry, apenas a piedade cristã os impedira de praticar a antropofagia.
Finalmente, chegando à Europa, os huguenotes iniciaram uma campanha difamatória contra Villegagnon, acusando-o de ter se convertido à Reforma e depois traído a causa. Em 1559, o cavaleiro de Malta retornou à França para se defender das acusações e publicou um livro discutindo a teologia de Calvino, convidando o reformador para um debate, que jamais aconteceu. A fidelidade à ortodoxia católica demonstrada por Villegagnon provocou uma guerra de panfletos, com muitas respostas e réplicas por parte dos protestantes. Ele acabou reconquistando a confiança do jovem rei Francisco II (1544-1560), e preparava outra expedição rumo ao Novo Mundo, em 1561, quando chegou a notícia da queda do Forte Coligny, na França Antártica, tomado pelos portugueses em 1560. Villegagnon abandonaria este plano, tratando apenas de obter uma indenização da Coroa portuguesa. E ganhou, apesar das pretensões lusitanas de legitimidade do tratado de Tordesilhas.
Os franceses ainda persistiram na Guanabara até 1567, quando seriam definitivamente expulsos por Mem de Sá. Embora tenham construído duas fortalezas nesse período, Paranapuã e Uruçumirim, a colônia jamais voltou a ser o que fora antes.
Pouco se sabe do que se passou nesses últimos sete anos, mas os relatos portugueses apontam que nas fortificações havia muito mais indígenas que franceses.
Na década de 1570, o debate foi retomado na França, quando André Thévet publicou a Cosmografia Universal, que acusava os protestantes pela perda da França Antártica. Respondendo a essa obra, Jean de Léry escreveu sua História de uma viagem feita à terra do Brasil, em que defenderia os huguenotes dessa acusação, atribuindo o verdadeiro fim da colônia às atitudes de Villegagnon, traidor da confiança de Coligny.
Independentemente da disputa de versões, as obras de Thévet e Léry constituem preciosos registros sobre o Brasil da época. Embora a experiência da França Antártica tenha sido temporária, legou essas fontes de pesquisa e, mais ainda, a “cidade maravilhosa” de São Sebastião do Rio de Janeiro. Já dizia Jean de Léry que não havia no mundo paisagem mais bela que a Baía de Guanabara. Este talvez seja um dos raros fatos incontestáveis sobre o episódio da França Antártica.
Luiz Fabiano de Freitas Tavares é professor Universidade Castelo Branco e da Rede Municipal do Rio de janeiro, Autor do Livro entre Genebra e a Guanabara: A discussão política huguenote sobre a França Antártica (TopBooks, 2009).
O protestantismo de Calvino
Noventa e cinco teses contra os abusos da hierarquia eclesiástica afixadas na porta da igreja de Wittenberg, Alemanha, em 1517. Este gesto de denúncia, realizado por Martinho Lutero (1483-1546), geralmente é considerado o início da Reforma Protestante. O monge agostiniano é excomungado. Em resposta, a bula papal é queimada. Como um incêndio, as novas ideias vão se propagando: católicos e reformados se confrontam, sobretudo na Europa Central.
O francês João Calvino (1509-1564) adere ao protestantismo, desenvolvendo uma linha particular que enfatiza a predestinação, segundo a qual o homem já nasce escolhido por Deus para a vida eterna ou para a condenação. Do ponto de vista moral, o calvinismo é marcado por um extremo rigor, visível na própria cidade de Genebra, governada por Calvino e seus seguidores, onde danças e jogos são proibidos, e é imposta uma rígida disciplina a todos os habitantes. A doutrina do reformador genebrino se difunde principalmente nos Países Baixos, na Escócia, na Inglaterra (dando origem a duas correntes: os presbiterianos, mais moderados, e os puritanos, mais radicais) e na França, onde os calvinistas recebem o nome de huguenotes.
Fonte aqui
sábado, 9 de fevereiro de 2013
Chegança
Chegança
Antonio Nóbrega
sou Xavante e Cariri,
Ianonami, sou Tupi
Guarani, sou Carajá.
Sou Pancararu,
Carijó, Tupinajé,
Potiguar, sou Caeté,
Ful-ni-o, Tupinambá.
Depois que os mares dividiram os continentes
quis ver terras diferentes.
Eu pensei: "vou procurar
um mundo novo,
lá depois do horizonte,
levo a rede balançante
pra no sol me espreguiçar".
eu atraquei
num porto muito seguro,
céu azul, paz e ar puro...
botei as pernas pro ar.
Logo sonhei
que estava no paraíso,
onde nem era preciso
dormir para se sonhar.
Mas de repente
me acordei com a surpresa:
uma esquadra portuguesa
veio na praia atracar.
De grande-nau,
um branco de barba escura,
vestindo uma armadura
me apontou pra me pegar.
dei um pulo da rede,
pressenti a fome, a sede,
eu pensei: "vão me acabar".
me levantei de borduna já na mão.
Ai, senti no coração,
o Brasil vai começar.
sábado, 2 de fevereiro de 2013
I JUCA PIRAMA
No século XIX, o poeta Gonçalves Dias, famoso pela Canção do Exílio, escreveu o poema I Juca Pirama, a história de um guerreiro tupi que para não deixar o pai velho, cego e cansado sem proteção, suplica aos chefes dos Timbiras que o deixem viver. Tal súplica demove os Timbiras da decisão e da tradição de devorar o guerreiro prisioneiro. Livre, o jovem guerreiro Tupi vai em busca do velho pai e quando o encontra, o ancião indígena quer saber como ele chegara até ali, sobretudo depois de ter sido feito prisioneiro. Desconcertado, o jovem tupi esconde do velho que suplicou pela vida em nome do amor que sente pelo pai. Diz apenas que o soltaram para cuidar dele. O velho tupi, cioso da honra da tribo decide ir com o filho até à aldeia dos Timbiras para agradecer o gesto de grandeza, mas também para salvar a honra do povo tupi. É nesse momento que o pai do guerreiro descobre a súplica do filho, suas lágrimas diante da morte, e se enche de vergonha. Abaixo, trechos do poema.
IV
Meu canto de morte,
Guerreiros, ouvi:
Sou filho das selvas,
Nas selvas cresci;
Guerreiros, descendo
Da tribo tupi.
Da tribo pujante,
Que agora anda errante
Por fado inconstante,
Guerreiros, nasci;
Sou bravo, sou forte,
Sou filho do Norte;
Meu canto de morte,
Guerreiros, ouvi.
Já vi cruas brigas,
De tribos imigas,
E as duras fadigas
Da guerra provei;
Nas ondas mendaces
Senti pelas faces
Os silvos fugaces
Dos ventos que amei.
Andei longes terras
Lidei cruas guerras,
Vaguei pelas serras
Dos vis Aimoréis;
Vi lutas de bravos,
Vi fortes - escravos!
De estranhos ignavos
Calcados aos pés.
E os campos talados,
E os arcos quebrados,
E os piagas coitados
Já sem maracás;
E os meigos cantores,
Servindo a senhores,
Que vinham traidores,
Com mostras de paz.
Aos golpes do imigo,
Meu último amigo,
Sem lar, sem abrigo
Caiu junto a mi!
Com plácido rosto,
Sereno e composto,
O acerbo desgosto
Comigo sofri.
Meu pai a meu lado
Já cego e quebrado,
De penas ralado,
Firmava-se em mi:
Nós ambos, mesquinhos,
Por ínvios caminhos,
Cobertos d’espinhos
Chegamos aqui!
O velho no entanto
Sofrendo já tanto
De fome e quebranto,
Só qu’ria morrer!
Não mais me contenho,
Nas matas me embrenho,
Das frechas que tenho
Me quero valer.
Então, forasteiro,
Caí prisioneiro
De um troço guerreiro
Com que me encontrei:
O cru dessossêgo
Do pai fraco e cego,
Enquanto não chego
Qual seja, - dizei!
Eu era o seu guia
Na noite sombria,
A só alegria
Que Deus lhe deixou:
Em mim se apoiava,
Em mim se firmava,
Em mim descansava,
Que filho lhe sou.
Ao velho coitado
De penas ralado,
Já cego e quebrado,
Que resta? - Morrer.
Enquanto descreve
O giro tão breve
Da vida que teve,
Deixai-me viver!
Não vil, não ignavo,
Mas forte, mas bravo,
Serei vosso escravo:
Aqui virei ter.
Guerreiros, não coro
Do pranto que choro:
Se a vida deploro,
Também sei morrer.
V
Soltai-o! - diz o chefe. Pasma a turba;
Os guerreiros murmuram: mal ouviram,
Nem pode nunca um chefe dar tal ordem!
Brada segunda vez com voz mais alta,
Afrouxam-se as prisões, a embira cede,
A custo, sim; mas cede: o estranho é salvo.
Timbira, diz o índio enternecido,
Solto apenas dos nós que o seguravam:
És um guerreiro ilustre, um grande chefe,
Tu que assim do meu mal te comoveste,
Nem sofres que, transposta a natureza,
Com olhos onde a luz já não cintila,
Chore a morte do filho o pai cansado,
Que somente por seu na voz conhece.
- És livre; parte.
- E voltarei.
- Debalde.
- Sim, voltarei, morto meu pai.
- Não voltes!
É bem feliz, se existe, em que não veja,
Que filho tem, qual chora: és livre; parte!
- Acaso tu supões que me acobardo,
Que receio morrer!
- És livre; parte!
- Ora não partirei; quero provar-te
Que um filho dos Tupis vive com honra,
E com honra maior, se acaso o vencem,
Da morte o passo glorioso afronta.
- Mentiste, que um Tupi não chora nunca,
E tu choraste!... parte; não queremos
Com carne vil enfraquecer os fortes.
Sobresteve o Tupi: - arfando em ondas
O rebater do coração se ouvia
Precípite. - Do rosto afogueado
Gélidas bagas de suor corriam:
Talvez que o assaltava um pensamento...
Já não... que na enlutada fantasia,
Um pesar, um martírio ao mesmo tempo,
Do velho pai a moribunda imagem
Quase bradar-lhe ouvia: - Ingrato! Ingrato!
Curvado o colo, taciturno e frio.
Espectro d’homem, penetrou no bosque!
VI
- Filho meu, onde estás?
- Ao vosso lado;
Aqui vos trago provisões; tomai-as,
As vossas forças restaurai perdidas,
E a caminho, e já!
- Tardaste muito!
Não era nado o sol, quando partiste,
E frouxo o seu calor já sinto agora!
- Sim demorei-me a divagar sem rumo,
Perdi-me nestas matas intrincadas,
Reaviei-me e tornei; mas urge o tempo;
Convém partir, e já!
- Que novos males
Nos resta de sofrer? - que novas dores,
Que outro fado pior Tupã nos guarda?
- As setas da aflição já se esgotaram,
Nem para novo golpe espaço intacto
Em nossos corpos resta.
- Mas tu tremes!
- Talvez do afã da caça....
- Oh filho caro!
Um quê misterioso aqui me fala,
Aqui no coração; piedosa fraude
Será por certo, que não mentes nunca!
Não conheces temor, e agora temes?
Vejo e sei: é Tupã que nos aflige,
E contra o seu querer não valem brios.
Partamos!... -
E com mão trêmula, incerta
Procura o filho, tacteando as trevas
Da sua noite lúgubre e medonha.
Sentindo o acre odor das frescas tintas,
Uma idéia fatal ocorreu-lhe à mente...
Do filho os membros gélidos apalpa,
E a dolorosa maciez das plumas
Conhece estremecendo: - foge, volta,
Encontra sob as mãos o duro crânio,
Despido então do natural ornato!...
Recua aflito e pávido, cobrindo
Às mãos ambas os olhos fulminados,
Como que teme ainda o triste velho
De ver, não mais cruel, porém mais clara,
Daquele exício grande a imagem viva
Ante os olhos do corpo afigurada.
Não era que a verdade conhecesse
Inteira e tão cruel qual tinha sido;
Mas que funesto azar correra o filho,
Ele o via; ele o tinha ali presente;
E era de repetir-se a cada instante.
A dor passada, a previsão futura
E o presente tão negro, ali os tinha;
Ali no coração se concentrava,
Era num ponto só, mas era a morte!
- Tu prisioneiro, tu?
- Vós o dissestes.
- Dos índios?
- Sim.
- De que nação?
- Timbiras.
- E a muçurana funeral rompeste,
Dos falsos manitôs quebrastes maça...
- Nada fiz... aqui estou.
- Nada! -
Emudecem;
Curto instante depois prossegue o velho:
- Tu és valente, bem o sei; confessa,
Fizeste-o, certo, ou já não fôras vivo!
- Nada fiz; mas souberam da existência
De um pobre velho, que em mim só vivia....
- E depois?...
- Eis-me aqui.
- Fica essa taba?
- Na direção do sol, quando transmonta.
- Longe?
- Não muito.
- Tens razão: partamos.
- E quereis ir?...
- Na direção do acaso.
VII
"Por amor de um triste velho,
Que ao termo fatal já chega,
Vós, guerreiros, concedestes
A vida a um prisioneiro.
Ação tão nobre vos honra,
Nem tão alta cortesia
Vi eu jamais praticada
Entre os Tupis, - e mas foram
Senhores em gentileza.
"Eu porém nunca vencido,
Nem nos combates por armas,
Nem por nobreza nos atos;
Aqui venho, e o filho trago.
Vós o dizeis prisioneiro,
Seja assim como dizeis;
Mandai vir a lenha, o fogo,
A maça do sacrifício
E a muçurana ligeira:
Em tudo o rito se cumpra!
E quando eu for só na terra,
Certo acharei entre os vossos,
Que tão gentis se revelam,
Alguém que meus passos guie;
Alguém, que vendo o meu peito
Coberto de cicatrizes,
Tomando a vez de meu filho,
De haver-me por se ufane!"
Mas o chefe dos Timbiras,
Os sobrolhos encrespando,
Ao velho Tupi guerreiro
Responde com tôrvo acento:
- Nada farei do que dizes:
É teu filho imbele e fraco!
Aviltaria o triunfo
Da mais guerreira das tribos
Derramar seu ignóbil sangue:
Ele chorou de cobarde;
Nós outros, fortes Timbiras,
Só de heróis fazemos pasto. -
Do velho Tupi guerreiro
A surda voz na garganta
Faz ouvir uns sons confusos,
Como os rugidos de um tigre,
Que pouco a pouco se assanha!
VIII
"Tu choraste em presença da morte?
Na presença de estranhos choraste?
Não descende o cobarde do forte;
Pois choraste, meu filho não és!
Possas tu, descendente maldito
De uma tribo de nobres guerreiros,
Implorando cruéis forasteiros,
Seres presa de via Aimorés.
"Possas tu, isolado na terra,
Sem arrimo e sem pátria vagando,
Rejeitado da morte na guerra,
Rejeitado dos homens na paz,
Ser das gentes o espectro execrado;
Não encontres amor nas mulheres,
Teus amigos, se amigos tiveres,
Tenham alma inconstante e falaz!
"Não encontres doçura no dia,
Nem as cores da aurora te ameiguem,
E entre as larvas da noite sombria
Nunca possas descanso gozar:
Não encontres um tronco, uma pedra,
Posta ao sol, posta às chuvas e aos ventos,
Padecendo os maiores tormentos,
Onde possas a fronte pousar.
"Que a teus passos a relva se torre;
Murchem prados, a flor desfaleça,
E o regato que límpido corre,
Mais te acenda o vesano furor;
Suas águas depressa se tornem,
Ao contacto dos lábios sedentos,
Lago impuro de vermes nojentos,
Donde fujas com asco e terror!
"Sempre o céu, como um teto incendido,
Creste e punja teus membros malditos
E oceano de pó denegrido
Seja a terra ao ignavo tupi!
Miserável, faminto, sedento,
Manitôs lhe não falem nos sonhos,
E do horror os espectros medonhos
Traga sempre o cobarde após si.
"Um amigo não tenhas piedoso
Que o teu corpo na terra embalsame,
Pondo em vaso d’argila cuidoso
Arco e frecha e tacape a teus pés!
Sê maldito, e sozinho na terra;
Pois que a tanta vileza chegaste,
Que em presença da morte choraste,
Tu, cobarde, meu filho não és."
Vale a pena ler o final...
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