Como surgiram as diferenças entre sunitas e xiitas e como a divisão entre os muçulmanos tornou-se uma ameaça à paz mundial
Texto: Eduardo Szklarz / Design: Villas | 08/08/2012 18h53
Em 12 de março deste ano, o líder religioso xiita Abdullah Dadou
morreu sufocado durante o incêndio de uma mesquita em Bruxelas, na
Bélgica. Ele tinha 46 anos e era pai de 4 filhos. Segundo as
autoridades, as chamas foram provocadas por um extremista sunita que
entrou no templo com uma faca, um machado e um galão de combustível.
Ataques desse tipo estão pipocando ao redor do mundo. Em junho, por
exemplo, a explosão de uma bomba no Paquistão matou 15 peregrinos xiitas
que voltavam de uma viagem ao Irã.
A violência entre grupos
xiitas e sunitas também deixou quase 200 mortos no Iraque. Nove deles
eram jogadores e torcedores que morreram com a detonação de um artefato
perto de um campo de futebol em Hilla, no sul do país. Todos os dias, a
violência sectária faz novas vítimas. Por trás de todas essas cifras
recentes, contudo, existe um conflito histórico que remonta às primeiras
gerações de muçulmanos. Tudo começou com uma desavença política, que
sofreu uma transformação gradual nos séculos seguintes. Os dois lados
adquiriram diferenças teológicas, colecionaram ressentimentos e hoje
protagonizam um confronto geopolítico. É o que você vai ver nesta
reportagem.
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O sucessor de Maomé
Para
entender a disputa entre xiitas e sunitas é preciso voltar ao século 7,
quando Maomé fundou o Islã. Segundo a tradição muçulmana, os seguidores
do Profeta deixaram a idolatria para seguir Alá, o deus único. Maomé
foi perseguido em Meca, sua cidade natal, e migrou para Medina – onde
fundou a primeira comunidade islâmica (a umma). Lá, tornou-se um líder
religioso, político e militar. E as revelações divinas feitas a ele
ficaram registradas no Corão, o livro sagrado dos muçulmanos.
Maomé
nunca deixou claro quem seria seu sucessor. Quando morreu, em 632, a
comunidade muçulmana tinha um belo abacaxi nas mãos. Como seria
escolhido o novo líder? Que funções ele teria? Quanto duraria o mandato?
Assim, surgiram dois grupos antagônicos. “O primeiro, minoritário,
preferia reservar a honra da linhagem profética à família de Maomé. Seu
pretendente era Ali ibn Abi Talib, genro do Profeta, casado com sua
filha Fátima”, diz o historiador Peter Demant, autor de O Mundo
Muçulmano. “Para a segunda corrente, porém, qualquer fiel poderia ser
candidato, desde que fosse aceito por consenso pela comunidade.”
O
grupo menor formava o Shiat Ali, ou “partido de Ali”. Seus seguidores
ficaram conhecidos como xiitas. A facção majoritária foi chamada de
sunita (do termo Ahl al Sunna, “o povo da tradição”). Em meio à
emergência de escolher um novo líder, o círculo íntimo dos seguidores do
Profeta elegeu Abu Bakr, velho companheiro de Maomé. Abu Bakr usou o
título de califa (khalifa khalifa), uma palavra árabe que combina as
ideias de sucessor e representante. Os sunitas aplaudiram a escolha, mas
o xiitas protestaram: eles
insistiam que Ali era o candidato legítimo.
Pouco
antes de morrer, em 634, Abu Bakr apontou Umar ibn Al-Khatab como seu
sucessor. As tropas de Umar expandiram o domínio do Islã pela península
arábica, Egito, Síria, Palestina, Mesopotâmia e parte do Cáucaso. Em seu
leito de morte, Umar nomeou um conselho para decidir quem seria o
terceiro califa. E o escolhido foi Uthman ibn Affan, membro de uma
família grã-fina de Umaya, em Meca. Uthman derrotou a Pérsia e ampliou
ainda mais os domínios do califado, mas os conflitos internos minaram
seu governo. As tribos nômades o identificavam com os privilégios dos
aristocratas que Maomé havia combatido. A crise desbancou para uma
guerra civil e rebeldes muçulmanos assassinaram Uthman em 656, abrindo
espaço para que Ali – o preferido dos xiitas – se tornasse califa.
“Quando Ali finalmente assumiu, as divisões eram profundas demais para
que ele conseguisse impor sua autoridade”, diz Demant. Ali foi morto 5
anos depois – também pelas mãos de um opositor. Os xiitas apoiaram a
posse de Hassan, filho de Ali, mas o jovem cedeu ante a oposição de
Muawiya ibn Abu Sufyan, governador da Síria. Muawiya fundou então a
primeira dinastia de califas: a dos omíadas, sunitas. Os sunitas
reconheceram o reinado dos 4 primeiros califas – os Reshidun (“os
retamente justos”). Para os xiitas só o reinado de Ali foi legítimo
A mutação do conflito
Nos
séculos seguintes, a divisão passou a incluir também agravos e
diferenças teológicas. E essas mudanças começaram a tomar forma em 680.
Foi quando Hussein, filho caçula de Ali e neto de Maomé, comandou uma
rebelião xiita para impedir que o califa omíada Yazid assumisse o trono.
Hussein foi degolado e seus aliados acabaram mortos na Batalha de
Karbala, no atual Iraque. “O tratamento dado a Hussein motivou
ressentimentos entre os xiitas. A celebração de seu assassinato durante a
Ashura (o décimo dia do mês de Muharran) se tornou um período emotivo
no qual a comunidade xiita compartilha seu sofrimento”, diz Yvonne
Haddad, professora de História do Islã na Universidade de Georgetown.
A
tragédia também ajuda a entender por que os xiitas valorizam tanto a
noção de martírio. Segundo Haddad, a principal distinção entre os grupos
vem de sua visão de mundo. Sunitas acreditam que o Corão é a palavra
eterna de Deus que coexistia com Ele antes da Criação. Já para os
xiitas, o Corão foi criado no tempo e passou a existir quando Deus se
revelou à humanidade. Isso faz toda a diferença na maneira como eles
leem o livro sagrado. “Xiitas consideram que precisam ser guiados para
interpretar o Corão na vida diária, pois o livro depende da época e do
lugar. Assim, precisam um imã (líder religioso) para ajudá-los a
entender a mensagem do Corão”, diz Haddad. “Os sunitas, por sua vez,
acreditam que a palavra de Deus é a mesma e vale para qualquer tempo e
lugar. Portanto, as opiniões dos clérigos sunitas não são tomadas muito
seriamente. E aqueles que clamam por um retorno às interpretações
originais são levados muito a sério. Sunitas tendem a ser mais
doutrinários.”
Os dois grupos também seguem diferentes coleções
de Hadith, as narrativas sobre atos e palavras do Profeta. Isso porque
cada lado confia em narradores diferentes. Sunitas preferem aqueles que
eram próximos de Abu Bakr, enquanto os xiitas confiam nos que pertenciam
ao grupo de Ali. Aisha, por exemplo, é considerada uma fonte importante
pelos sunitas e desprezada pelos xiitas por ter lutado contra Ali.
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Aqui é possível fazer uma comparação com o cisma cristão, pois ele também deriva de um embate sobre a autoridade religiosa.
Católicos
defendiam que a Igreja tinha o poder de definir o que é o cristianismo,
enquanto os protestantes deixavam essa decisão na mão dos indivíduos.
No caso do cisma muçulmano, a discussão é um pouco diferente. Sunitas
creem que a autoridade está calcada na tradição, isto é, nas práticas do
Profeta e de seu círculo íntimo tal como eles a definiram.
Já
para os xiitas a autoridade está nas “fontes de emulação” – os líderes
supremos da hierarquia religiosa xiita, como os aiatolás. Sunitas também
consideram que o imã é simplesmente a pessoa que lidera a congregação,
como o pastor dos cristãos. Já para os xiitas, o termo Imã (com letra
maiúscula) assumiu um significado totalmente diferente. Ele se refere
aos verdadeiros sucessores espirituais do Profeta Maomé, começando por
Ali. Os xiitas veem os Imãs como uma espécie de santos – o que para
muitos sunitas é uma verdadeira heresia.
Além disso, os xiitas
cultivam uma expectativa messiânica sobre a vinda do Mahdi (Redentor), o
que não se observa tanto na outra corrente. Ou seja: os sunitas são
ancorados no passado, ao passo que os xiitas são mais experimentadores e
olham mais para o futuro. O título de aiatolá, aliás, é bastante
recente. E – veja só que ironia – acaba reproduzindo no Islã xiita a
estrutura do clero cristão. “Os líderes do Irã já dotaram seu país dos
equivalentes de um pontificado, de um colégio de cardeais, um conselho
de bispos e, principalmente, de uma inquisição, coisas que eram todas
alheias ao Islã”, diz o historiador britânico Bernard Lewis, da
Universidade de Princeton, EUA. “É possível que acabem provocando uma
Reforma.”
Assassinos: os avós dos terroristas
O
martírio é uma noção fundamental entre as seitas xiitas. Mas nenhuma
delas levou a ideia tão a sério quanto a Ordem dos Assassinos, que
espalhou o terror na Pérsia e na Síria nos séculos 11 e 12. Seus
integrantes eliminavam gente graúda: monarcas, ministros, generais e
religiosos – do bando rival, claro. “O inimigo era o sistema político,
militar e religioso sunita. Os assassinatos eram planejados para
aterrorizá-lo, enfraquecê-lo e, finalmente, derrubá-lo”, diz o
historiador Bernard Lewis no livro “Os Assassinos”. Executar a vítima
significava um ato de devoção e envolvia um belo ritual. Segundo os
relatos do explorador Marco Polo, que esteve na Pérsia em 1273, os
chefes da seita ofereciam haxixe aos jovens convocados para matar – daí o
nome Haxaxin, que depois derivou para Assassinos. A droga lhes dava um
gostinho antecipado das delícias do Paraíso.
É que nenhum deles
esperava sair vivo da missão. “Depois de matar, os Assassinos não
tentavam fugir nem cometiam suicídio. Eles esperavam morrer na mão dos
inimigos”, diz Lewis. Sempre usavam a adaga em vez de veneno ou armas de
arremesso, o que tornava a operação muito mais arriscada. Atacavam em
mesquitas, mercados ou palácios, agiam sob absoluto sigilo e muitos se
vestiam de mulher para garantir o sucesso da emboscada. O fundador da
seita teria sido o persa Hassan i-Sabah, conhecido como Velho da
Montanha. Ele teria recrutado os primeiros Assassinos depois de se
converter ao ramo ismaelita do xiismo no século 11 – época em que o
Oriente Médio foi invadido pelos cruzados.
Disputa virou geopolítica
Atualmente,
os sunitas representam cerca de 90% do Islã e os xiitas, 10%. A velha
rixa é travada por governos cujos interesses vão além da tradição
religiosa. “O que vemos hoje é um conflito geopolítico”, diz o escritor
Reza Aslan, especialista em história do Islã. Para ele, há dois polos de
influência no mundo islâmico: Arábia Saudita (sunita) e Irã (xiita).
“Vemos diversos grupos fundamentalistas, como o sunita Al Qaeda, que
acusa os xiitas de infiéis. Mas de onde vem a Al Qaeda? Da Arábia
Saudita, que enxerga o Irã como a principal ameaça”, diz .
O
conflito é alimentado com o dinheiro do petróleo. O Irã patrocina grupos
terroristas xiitas, como o libanês Hezbollah. A monarquia saudita
fomenta uma versão extremista sunita, o wahhabismo, ensinado em escolas e
mesquitas ao redor do mundo. “O wahhabismo exerce uma influência
tremenda sobre a diáspora muçulmana”, diz Lewis. “Em países
não-islâmicos não existe controle sobre o que é ensinado nessas escolas.
Há um ensino muito mais extremo em colégios muçulmanos da Europa e da
América que na maioria dos países islâmicos.”
O Iraque virou
palco perfeito para o embate entre os polos muçulmanos. Desde a retirada
das tropas americanas do país, em dezembro, a violência sectária
explodiu com atentados quase diários. A maioria xiita deseja vingar as
atrocidades do ditador Saddam Hussein, um sunita. O Irã apoia as
milícias xiitas. Os sauditas e a Al Qaeda atuam no campo rival. A
dinâmica se repete pelo Oriente Médio. No Barein, por exemplo, a maioria
xiita se rebela contra rei Hamad, que é sunita. Na Síria, principal
aliada do Irã, a Primavera Árabe motivou uma rebelião contra o regime
alauíta, da minoria xiita.
Segundo as Nações Unidas, os
confrontos já produziram mais de 9 mil mortos no país. Isso não
significa que o conflito seja mais violento hoje. Nos primeiros séculos
do Islã, houve guerras massivas. “Nos séculos 7 e 8, os omíadas
construíram um império sunita. E quem não fosse sunita era massacrado”,
diz Aslan. “No século 8, os abássidas assumiram o poder. Eles descendiam
de Maomé através de Fátima (filha do Profeta e mulher de Ali). Eram
xiitas. E seu império massacrou sunitas.”
Livro
O Oriente Médio, Bernard Lewis, Jorge Zahar, 1996
Fonte: http://guiadoestudante.abril.com.br/aventuras-historia/confira-como-surgiu-divisao-sunitas-xiitas-696521.shtml
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