segunda-feira, 27 de outubro de 2014

A IDADE MODERNA E A ARTE RENASCENTISTA

 
Tradicionalmente, o período histórico conhecido como Idade Moderna se estende do século XV ao século XVIII. Todos os eventos compreendidos entre essas duas datas e que se relacionam com a história das sociedades da Europa, especialmente de sua porção ocidental, são eventos da Idade Moderna.
Lembre-se que essa divisão da história em períodos (Idades) é arbitrária, e não pode ser considerada de forma absoluta. Seria mais adequado entender que a Baixa Idade Média foi antes uma fase de transição para a Idade Moderna, isto é, muitos elementos que vão caracterizar a modernidade tiveram sua origem ou o seu início nos séculos finais da Idade Média.
Entre os eventos da Idade Moderna que podemos destacar, estão:
O Renascimento
A Reforma Protestante.
A Formação das Monarquias Nacionais.
As Grandes Navegações
A Colonização da América
O Capitalismo Comercial.
O RENASCIMENTO
Movimento artístico, cultural e científico que provocou uma verdadeira revolução cultural na Europa ocidental.
A REFORMA PROTESTANTE
O monge alemão Martinho Lutero, a partir de 1517, com suas 95 Teses, foi um dos responsáveis pela divisão da Igreja Católica Apostólica Romana. A partir daí, a cristandade do ocidente vai se dividir entre católicos e protestantes.
A FORMAÇÃO DAS MONARQUIAS NACIONAIS.
No período moderno, os reis foram pouco a pouco centralizando o poder político em sua pessoa. Dessa forma, as antigas atribuições da nobreza feudal vão sendo absorvidas pelo rei e seus funcionários. O ápice desse poder real vai ficar conhecido como absolutismo monárquico.
AS GRANDES NAVEGAÇÕES
A partir do século XV, a fim de escapar ao monopólio que os comerciantes de Veneza e Gênova impunham à venda das especiarias e à navegação no mar medieterrâneo, os portugueses se lançaram ao mar em busca de uma rota alternativa para o oriente. Essa busca dá início ao período das grandes viagens marítimas que vão proporcionar aos europeus o encontro com outras culturas, a ampliação radical do comércio mundial e a substituição do mar mediterrâneo pelo oceano atlântico como principal eixo de comércio na Idade Moderna.
A COLONIZAÇÃO DA AMÉRICA
Existem, atualmente na América, quatro línguas principais: o inglês, o espanhol, o português e o francês. Todas essas línguas são europeias e se hoje são as línguas mais faladas na América, deve-se ao fato de o nosso continente ter sido colonizado por ingleses, espanhóis, portugueses e franceses. Além disso, a América é o continente com a maior quantidade de cristãos (católicos e protestantes) do mundo. A religião cristã, portanto, foi outra herança da colonização europeia na América.
O CAPITALISMO COMERCIAL
Alguns historiadores (marxistas), implicam com  o termo capitalismo comercial. Preferem chamar a fase de ampliação do comércio em escala global, mas tendo como base a mão-de-obra, de acumulação primitiva de capital.
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O RENASCIMENTO E O HUMANISMO
 
Entre os séculos XIV e XVI aconteceu na Europa um movimento que transformou a arte (arquitetura, pintura e escultura); a cultura (o antropocentrismo substituindo o teocentrismo) e a ciência. Esse movimento que nasceu nas cidades que enriqueciam com o comércio e que tinha na burguesia o incentivo para o seu desenvolvimento, recebeu o nome de Renascimento.
A origem do termo renascimento, ou renascença, revela a maneira como os artistas e os humanistas da Idade Moderna viam o período medieval. Para esses artistas e intelectuais, a Idade Média havia sido um período de obscurantismo cultural, cheio de preconceitos e superstições, uma "Idade das Trevas!" 
A Arte e o Saber que mereciam respeito e reconhecimento eram aqueles que os antigos gregos e romanos (a cultura clássica) haviam produzido. Portanto, cabia a esses artistas fazer essa arte e esse saber renascerem a partir dos alicerces culturais deixados pela civilização clássica.
O CONTEXTO
O Renascimento teve origem na península itálica, e a partir dessa região, expandiu-se para outras partes da Europa, como França, Inglaterra, Holanda, Alemanha, Portugal e Espanha. As razões para que esse movimento que transformou a arte, a cultura e a ciência no Ocidente tenha começado na Itália são as seguintes:
1 - O enriquecimento das cidades italianas, especialmente Veneza, Gênova, Milão e Florença, com uma burguesia disposta a financiar os artistas e a reforçar novos valores, como a riqueza, o dinheiro, o individualismo e o antropocentrismo.
2 - A presença no território da Itália de construções que remetiam à época de apogeu da civilização romana e a existência de obras clássicas, como a dos filósofos gregos que chegaram à península trazidas por sábios bizantinos que haviam fugido de Constantinopla diante do cerco dos turcos otomanos.
3 - A rivalidade entre as cidades italianas que buscavam superar umas às outras tanto no comércio quanto na prosperidade. Essa rivalidade se estenderia também no campo da Arte e das Ciências, quando os governantes dessas cidades passaram a financiar e a proteger os seus artistas com o objetivo de sobrepor-se também nesse quesito, às rivais.
AS PRINCIPAIS CARACTERÍSTICAS DO RENASCIMENTO
A Valorização da Cultura Clássica
Os artistas do Renascimento e os humanistas tiveram pela cultura greco-romana uma admiração especial. Pintores, escultores, filósofos, teóricos, enfim, os chamados sábios beberão nas fontes clássicas para produzirem suas obras. Não queriam imitar os antigos gregos e os antigos romanos, mas terão neles e nas obras que eles deixaram, a inspiração para as suas próprias produções artísticas e obras filosóficas.
O Antropocentrismo.
Eis aqui uma das grandes marcas do renascimento e do humanismo. O antropocentrismo foi mais do que colocar o homem (ser humano) no centro das preocupações dos renascentistas e humanistas. Foi uma ruptura com o período medieval, marcado pelo teocentrismo.
O homem do Renascimento continua se preocupando com a sua salvação e não abandona sua fé cristã. Contudo, começa a sentir curiosidade por entender a natureza, os fenômenos sociais, a concepção da arte, o mundo à sua volta sem recorrer às escrituras ou à autoridade da Igreja. Além disso, ao contrário do teocentrismo, o antropocentrismo, por definição, acredita nas qualidades do gênio humano. O homem é capaz de realizar coisas maravilhosas porque possui, como criatura de Deus, a centelha divina.
O Naturalismo
Os artistas do Renascimento procuravam em suas pinturas e esculturas ser o mais fiel possível à realidade. As figuras humanas nos quadros e nas pedras apresentam uma semelhança notável com o mundo natural. além disso, a perspectiva - que dá ideia de profundidade numa pintura - e o movimento serão marcas da arte renascentista.
Na ciência, o naturalismo aguçou a curiosidade de cientistas que começaram a investigar a natureza e os seus fenômenos sem recorrer às escrituras ou à autoridade da Igreja.
O Individualismo.
Como consequência do naturalismo, o homem do Renascimento procura diferenciar-se pelo seu talento e pelo seu conhecimento dos demais. O artista do Renascimento defende a ideia de que cada ser humano é único e que precisa ser reconhecido por sua individualidade no mundo. Por isso, a partir do Renascimento, as obras-primas na pintura, na literatura, na arquitetura, na filosofia e nas descobertas científicas estarão ligadas definitivamente a um nome.
O Racionalismo.
Outra marca importantíssima do Renascimento. A valorização da razão deve ser entendida como uma nova forma de explicar o mundo e de conceber a arte. Nas ciências, a busca pela verdade vai se concentrar na observação da natureza, nos conhecimentos matemáticos, na reflexão dos dados obtidos dos fenômenos observados. A religião, a autoridade da Igreja, as escrituras, para o homem do renascimento deixaram de ser a fonte de saber e conhecimento. A Fé perde para a Razão nos assuntos relacionados à Ciência, à Política, à Filosofia.
 

segunda-feira, 4 de agosto de 2014

Império Árabe: a marcha por Alá

Em menos de 200 anos após a morte de Maomé, pela forçada fé e da espada os árabes conquistaram do sul da Europa até a Índia num movimento expansionista inédito na história

Celso Miranda e Isabelle Somma | 01/08/2006 00h00

A Europa vivia seus dias mais obscuros, consumida em conflitos sem fim entre reis e senhores cujo poder fragmentado não lhes permitia enxergar (ou ambicionar) nada além de seus próprios feudos. No entorno do Mediterrâneo, no leste do continente, no norte da África, no Egito e na Palestina, os cristãos bizantinos, orgulhosos herdeiros do velho Império Romano, lutavam para manter afastados os persas sassânidas, que controlavam as regiões da Mesopotâmia até a Ásia Central.

Foi quando, na periferia do mundo conhecido no século 7, um homem perto de seus 40 anos, que ganhava a vida conduzindo caravanas pelo deserto, afirmou ter recebido um chamado. O próprio Deus teria ordenado que ele proclamasse pelos quatro cantos que Alá era o único e que ele próprio, Maomé, seria seu mensageiro. Nascia a última grande religião monoteísta. Nascia também um império que em 200 anos se estenderia do sul da Europa até a Índia.

O primeiro passo para isso foi a unificação das tribos da península Arábica sob o poder dos seguidores de Maomé, os muçulmanos. Apenas 20 anos separam a revelação a Maomé da conquista muçulmana de Meca, o centro da vida social e econômica da região. “Tal êxito pode ser explicado pela carismática liderança política e religiosa de Maomé, pela força unificadora de sua mensagem e pela disposição militar de seus seguidores”, escreveu a historiadora Karen Armstrong em A History of God (“Uma história de Deus”, inédito no Brasil).

Na Arábia havia tribos de tradição judaica, cristã, zoroastrista, mas a maioria da população acreditava em uma diversificada gama de deuses e divindades. “As disputas entre clãs envolviam o predomínio comercial, o controle das rotas das caravanas e uma intrincada política de alianças que perpetuava antigas – e, às vezes, imemoriais – rivalidades”, afirma Karen. Os seguidores convertidos de Maomé eram vistos como mais uma dissidência da família. Uns caras estranhos que condenavam a comercialização de objetos religiosos na Caaba (local tradicional de adoração de ídolos, onde ficava uma pedra preta, provavelmente um meteorito, que muitos consideravam sagrada), em Meca. Em 622, cinco anos depois de Maomé começar a converter parentes e amigos da tribo dos coraixitas (a mais importante de Meca), os muçulmanos, que ainda eram poucas dezenas, foram expulsos e seguiram para Yatrhib, que passaria a ser chamada de Madinat al-Nabi (“a cidade do profeta”), ou Medina.

Em 630, Maomé, perto dos 60 anos de idade, voltou a Meca. À força. À frente de um exército de quase 10 mil homens, conquista a cidade sagrada. E se a religião não era a única e talvez nem a principal razão para a briga entre as tribos, a tomada de Meca teve, sim, um significado religioso. Tanto que, quando subjugou Meca, Maomé ordenou a destruição de todos os ídolos da Caaba. E proclamou o Islã (que significa “submissão”) como a verdadeira religião dos árabes. A tomada de Meca deu aos muçulmanos um poder inédito entre os árabes. A notícia de uma nova fé revelada por Deus a um homem, cujos seguidores pregavam a vida em coletividade, a importância da família, da obediência a Deus e à lei, começou a se espalhar.

SUCESSÃO E EXPANSÃO

Com a morte de Maomé, em 632, o sogro e melhor amigo dele, Abu Bakr, virou o chefe da comunidade islâmica – o califa. Abu lutou contra as tribos beduínas que ainda não reconheciam a autoridade política dos muçulmanos e, nos dois anos em que esteve no comando, submeteu os rebeldes com a ajuda de um recém-convertido, o general Khalid ibn al-Walid. Ao final das batalhas, a península Arábica estava unificada. Pela primeria vez, as leis substituíam tradições tribais e uma autoridade única se impunha sobre as demais.
Reunidos em nome do Islã, os exércitos árabes, também de forma inédita, podiam fazer frente aos dois grandes impérios vizinhos. Aqui talvez caiba um parêntese para explicar melhor o que era ser um império por ali, no século 7. Com a escassez de recursos naturais, conquistar territórios e submeter cidades eram formas de aumentar a arrecadação, por meio de impostos ou saques. A principal atividade econômica, o comércio, dependia das cidades e rotas comerciais. Quem as controlasse tinha o poder. E era das regiões conquistadas que vinham os homens para o exército. Pensando nisso, em 634, os árabes investiram contra os bizantinos, conquistando parte da Palestina e Síria, e ocuparam a Mesopotâmia (atual Iraque), submetendo os persas. Embora na maioria das cidades não tenha sido necessário desembainhar a espada – muitos governantes se renderam e evitaram a destruição em troca do pagamento de impostos –, estima-se que perto de 20 mil pessoas morreram nas invasões.

O avanço muçulmano nas terras dos vizinhos seria ainda mais avassalador – e sangrento – durante o califado seguinte, de Omar. Em 636, os bizantinos pararam de recuar e entregar suas cidades. E enfrentaram os árabes. Na batalha do rio Yarmuk, na Síria, quase 200 mil soldados se enfrentaram. Mais de 70 mil morreram. Uma a uma, as cidades bizantinas caíram diante do exército muçulmano, que havia se tornado a maior força militar da época.

“Os árabes não eram uma horda tribal, mas uma força organizada, cujos líderes, como o general Khalid ibn al-Walid, haviam adquirido experiência militar a serviço dos bizantinos”, diz o historiador libanês Albert Hourani em Uma História dos Povos Árabes. Além disso, os soldados estavam bem treinados pelas guerras de conquista na península e enfrentavam inimigos desmotivados e em crise. “As guerras entre bizantinos e sassânidas, que já duravam quatro séculos, enfraqueceram ambos, mas principalmente os sassânidas, que foram o maior império de seu tempo e desapareceram depois de menos de seis anos de lutas contra os árabes.”

Para o historiador Carl W. Ernst, especialista em Estudos Religiosos da Universidade da Carolina do Norte, nos Estados Unidos, não é lá muito preciso dizer que a expansão do Islã foi feita pela espada. “O avanço militar foi avassalador, mas a aceitação da religião muçulmana pelos povos submetidos foi mais lenta e nunca total”, diz Ernst.

“Parece mais provável que o combustível para o avanço tenham sido as novas conquistas materiais e territoriais, e não espirituais. Houve ação militar e conquista no início da propagação do Islã, mas o objetivo não foi a conversão, e sim a expansão de um novo Estado”, afirma Fred Donner, professor de História do Oriente Médio na Universidade de Chicago, nos Estados Unidos. “Os povos conquistados geralmente não eram solicitados a se converter, a menos que não fossem monoteístas. Mas a maioria – na Síria, Iraque, Irã e Egito – já era, pois seguia o cristianismo, o judaísmo e o zoroastrismo”, diz Donner.

Se os habitantes dos novos territórios dominados pelos árabes não eram obrigados a se converter, quem o fizesse levava vantagens. Quem não era muçulmano tinha de pagar a jizya, um imposto sobre a renda. “Levou muitos anos até que as populações conquistadas das províncias do Oriente Médio se tornassem muçulmanas. O processo de conversão foi muito lento e ocorreu por causa das vantagens econômicas e do convívio social,” diz Donner.

NASCE O IMPÉRIO

Em 644, Omar foi assassinado e Otman assumiu. O terceiro califa continuou a expansão militar, realizou as primeiras expedições marítimas no Mediterrâneo, conquistou o Chipre, submeteu de vez os sassânidas e invadiu o Egito. Outra grande obra de seu governo foi organizar, pela primeira vez, os ensinamentos transmitidos por Maomé – que até então eram passados pela tradição oral – em um livro, o Alcorão. Internamente, porém, Otman não manteve unida a comunidade que, com cada vez mais territórios, dividiu-se entre interesses tribais. Otman nomeou seus familiares para cargos importantes – como o primo Muawiya, escolhido para governar a Síria – e era acusado de privilegiar o clã dos Omíadas (poderosa família de Meca cujo líder, Abu Sufyan, havia sido inimigo de Maomé). Otman foi assassinado em 656.
Sua morte gerou confusão em torno de quem deveria ser o novo califa. Os três primeiros sucessores haviam sido escolhidos entre os companheiros e amigos de Maomé, e, apesar de desavenças, aceitos pela comunidade sem maiores problemas. O quarto, parecia lógico, deveria ser Ali, que além de ser um dos mais fiéis seguidores de Maomé ainda vivos, era seu primo e genro, casado com Fátima, e pai dos únicos netos do profeta. Mas, dessa vez, a linha sucessória não seria aceita. Entre seus opositores estavam Aisha, uma das viúvas de Maomé, e dois de seus velhos amigos, Talha e Zubair, que acusavam Ali de ter matado Otman e defendiam que Muawiya fosse o próximo califa. Ali assumiu o poder, o que iniciou uma guerra entre as duas facções. Em 657 elas se enfrentaram na batalha de Siffin, mas nenhuma conseguiu vencer a outra. Diante do impasse, Ali concordou com uma arbitragem externa, mas acabou afastado e Muawiya foi nomeado califa. Uma parte dos apoiadores de Ali, no entanto, permaneceu fiel a ele e às suas pretensões. Foram chamados de xiitas (shi’at ‘Ali, ou os “partidários de Ali” em árabe).

Em 660, Muawiya é reconhecido califa na Síria, Palestina, Egito e Hejaz (atual Arábia Saudita). Mas os xiitas ainda proclamavam a legitimidade de Ali no Iraque e no Irã. Em 661, Ali foi assassinado e tornou-se um mártir entre os xiitas.

Sob o comando dos Omíadas, dinastia criada a partir de Muawiya, a expansão continuou. No Oriente, os árabes chegaram ao Sind, atual Paquistão. Lá, as cadeias montanhosas foram mais eficazes para deter o avanço muçulmano do que qualquer exército. Entre 674 e 678, os exércitos muçulmanos cercaram Constantinopla, a capital bizantina, às margens do Mediterrâneo. Era a primeira vez que chegavam tão perto da Europa. Era o primeiro de uma série de conflitos que ainda duraria oito séculos quando, enfim, a cidade cairia sob as tropas turcas muçulmanas, em 1453, na data que marca o fim da Idade Média.

ISLÃ NA EUROPA

De um lado, centenas de cavaleiros com suas lanças compridas, protegidos por armaduras de metal. Atrás deles, milhares a pé empunhavam pesadas espadas de aço. De outro lado, homens vestidos em trapos carregavam punhais e espadas mais leves e finas. Os primeiros, membros do mais poderoso exército de seus dias: o árabe. Os segundos, os francos, além de contarem com armamento insuficiente e poucos cavalos, tinham pelo menos três vezes menos homens. Mas em 10 de outubro de 732, o futuro da Europa cristã estava nas mãos daqueles homens enfileirados que esperavam seu destino, próximo a Poitiers, no sul da França

Depois de serem barrados em Constantinopla, os árabes haviam chegado à Europa por outra rota. Abrindo caminho pelo norte da África, onde em menos de duas décadas submeteram praticamente todas as tribos, em 711 um poderoso exército muçulmano atravessou as águas do Mediterrâneo em Gibraltar, no sul da península Ibérica, e em apenas sete anos derrotaram os feudos medievais, dominando quase toda a Ibéria e pedaços da França. Criaram o Al-Andalus, um império árabe na Europa.

O avanço parecia irresistível, até aquela manhã de 732, quando Abd Al-Rahman, o líder andaluz, investia contra o sudoeste da França pela quarta vez. A Europa Ocidental estava prestes a ser totalmente subjugada pelos muçulmanos. Até que uma batalha contra os francos, na cidade de Poitiers, terminaria impondo uma barreira para a expansão do Islã.

Apesar de os muçulmanos terem acumulado mais vitórias em combates e estarem melhor equipados, os francos estavam em casa, tinham bom conhecimento do terreno e um líder com fama de durão, Carlos Martel. Os fatos que decidiram a batalha ainda são controversos (leia quadro abaixo). Sabe-se, por relatos de ambos os lados, que, em meio à luta, houve uma debandada geral dos muçulmanos. Historiadores, como Trevor Ling, autor de A History of Religion East and West (“Uma história da religião oriental e ocidental”, sem versão em português), acreditam que a luta já não era um consenso entre os líderes árabes e que, após a morte de Al-Rahman na batalha, alguns comandantes preferiram se retirar, o que teria levado a uma reação em cadeia. Outra versão, citada pelo historiador inglês David Nicolle no Atlas Histórico del Mundo Islámico (“Atlas histórico do mundo islâmico”, inédito no Brasil), sugere que a falsa notícia de que o acampamento árabe, onde estavam guardados os saques de Bordeaux, estava sendo atacado levou à retirada desordenada.

ERA DE OURO

Na metade do século 8, o império já havia se tornado grande demais para resistir às divisões políticas. O maior racha aconteceu em Damasco. Os seguidores de Abu Muslim derrotaram os omíadas, em 750, e fundaram uma nova dinastia, a abássida. “A ascensão dos abássidas contou com o apoio maciço de povos não-árabes, principalmente persas islamizados, que haviam sofrido com a política discriminatória dos omíadas”, diz Mamede Mustafa Jarouche, professor de Língua, Literatura e Cultura Árabe da Universidade de São Paulo. “Ao mesmo tempo, houve a incorporação de vários elementos das culturas persa e indiana, entre outras. Mas a língua árabe passou a desempenhar papel mais importante.” O árabe era o principal meio de expressão literária e da burocracia governamental e, claro, de difusão da religião, por meio do Alcorão.

Em 751, os árabes derrotam os chineses da dinastia Tang na batalha do rio Talas, próximo ao grande lago Balkash, no atual Cazaquistão, pelo controle da Ásia Central. Os prisioneiros de guerra chineses introduziram no mundo árabe as técnicas da fabricação de papel. “A criação de estradas, moedas e leis, aliada à disseminação do idioma árabe, permitiu a circulação de cultura, literatura e conhecimento entre os povos da China e da Europa”, afirma o historiador Marshall G.S. Hodgson, no livro The Venture of Islam (“A aventura do Islã”, inédito no Brasil). O árabe tornou-se uma língua internacional – era possível ler na China trovas escritas na Espanha Ibérica. Em árabe, a matemática indiana podia ser escrita e entendida em Alexandria, no Egito. O momento de relativa paz interna fez do período abássida a chamada “era de ouro” do Império Árabe.

A disseminação da língua árabe e a tolerância cultural também foram fundamentais para acelerar a penetração da religião muçulmana que, nessa fase, foi muito mais expressiva. “No fim do período omíada, menos de 10% da população do Irã e do Iraque, Síria e Egito, Tunísia e Espanha era muçulmana”, afirma Albert Hourani. “No fim do quarto século islâmico (10) o quadro mudou. A proporção se inverteu e apenas 10% não eram islâmicos.”

Nos séculos seguintes, a expansão do grande império foi muito além dos povos árabes. Na Pérsia, na Ásia Central, no Egito, no Iraque e na Índia surgiriam novas dinastias que lutariam pelo predomínio dentro do mundo muçulmano. “Os árabes deram lugar a outros povos muçulmanos que, a partir do século 10, passaram a ocupar seus territórios e sucedê-los como dominadores políticos e culturais. A expansão muçulmana nunca deixou de acontecer e, mesmo hoje, se mantém”, escreve Hodgson. A cultura dos árabes ainda iria muito além da Espanha e da Índia e, mesmo depois de superados, seu legado passaria a ser indiscutível, mesmo entre seus sucessores turcos, curdos, persas e otomanos. E o principal desses legados era justamente a religião do profeta: o Islã.

Fonte aqui

sexta-feira, 16 de maio de 2014

Naia X Luzia.






Esqueleto de 12.000 anos prova que primeiros habitantes da América vieram da Ásia

Amostras de DNA ligaram o esqueleto batizado de Naia aos indígenas americanos

Crânio de Naia, fóssil de 12 mil anos encontrado numa caverna submersa no México.

Definir a origem dos primeiros povos da América tem sido um desafio para arqueólogos e antropólogos. A descoberta de um esqueleto em uma caverna submersa do México pode ser o elo que faltava entre os primeiros habitantes da América e os povos indígenas que se desenvolveram no continente. O estudo, realizado por pesquisadores dos Estados Unidos, Canadá, México e Dinamarca, foi publicado nesta quinta-feira, na revista científica Science.

Uma das teses mais aceitas para a origem dos americanos é a de que os primeiros habitantes seriam descendentes de siberianos que chegaram ao continente por Beríngia, uma porção de Terra firme que ligou o Alasca e a Sibéria em diversos momentos do Pleistoceno, período que corresponde ao intervalo entre 1,8 milhão e 11.500 anos atrás.

Essa ideia, porém, esbarra no seguinte problema: as características faciais dos esqueletos mais antigos encontrados na América não se parecem muito com os povos indígenas da atualidade. Os crânios encontrados em escavações são mais longos e estreitos do que os dos indígenas, e seus rostos, menores. Isso levou à especulação de que os primeiros americanos pré-históricos e os indígenas tinham origens distintas – ou chegaram da Ásia em diferentes estágios de sua evolução.

Esqueletos de paleoamericanos (como são chamados os primeiros povos que chegaram ao continente americano) não são encontrados com facilidade, o que dificulta a solução do mistério. "Os paleoamericanos eram povos nômades, que costumavam enterrar ou cremar seus mortos no lugar em que estivessem, tornando a localização de suas tumbas imprevisível", afirma James Chatters, dono da empresa de consultoria Paleociência Aplicada e principal autor do estudo.

Descoberta — Por essa razão, a descoberta de um esqueleto quase completo em uma caverna subaquática no México representa um marco no estudo sobre a origem do homem americano. O esqueleto pertence a uma menina que tinha entre 15 e 16 anos e, com base em estudos de datação por radiocarbono feitos em seu esmalte dentário e análises dos depósitos minerais em seus ossos, os pesquisadores concluíram que seu esqueleto tem, pelo menos, 12.000 anos.

A descoberta foi realizada em um conjunto de cavernas mexicanas denominado Sac Actun, na costa da Península de Iucatã, acessível somente a mergulhadores. O esqueleto recebeu o apelido de Naia, que significa "ninfa das águas". Ao lado de Naia, foram encontrados ossos de grandes mamíferos. Os pesquisadores acreditam que pessoas e animais caíram nessa caverna, que se tornou submersa há cerca de 10.000 anos, com o derretimento das geleiras.

Elo — Os pesquisadores analisaram o DNA mitocondrial de Naia — parte do material genético que é herdado apenas da mãe e utilizado para estudar ligações entre povos — e descobriram que seu perfil genético é semelhante ao dos indígenas atuais. Ao mesmo tempo, as características cranianas de Naia são dos primeiros habitantes da América. Dessa forma, Naia seria o elo entre os homens que chegaram ao continente e os que hoje vivem nele.

As diferenças craniofaciais, explicam os cientistas, se devem provavelmente a mudanças evolutivas que ocorreram depois que os habitantes de Beríngia vieram para a América.
Assim, o estudo sugere que a América não foi povoada por diferentes ondas migratórias vindas de partes da Eurásia (continente que era a junção da Europa e a Ásia), mas sim que a população se expandiu a partir dos homens que vieram da Ásia para o continente americano por meio de Beríngia. A equipe pretende agora tentar sequenciar o DNA nuclear de Naia, em busca de mais resposta sobre a origem dos povos americanos.




Fonte das imagens acima: http://www1.folha.uol.com.br/ciencia/2014/05/1454937-cranio-de-12-mil-anos-achado-no-mexico-e-similar-a-brasileiros-da-epoca.shtml

O assunto foi veiculado no dia 15 de maio no JN


domingo, 23 de fevereiro de 2014

No rastro do Povo de Luzia.



A entrevista abaixo foi publicada no dia 04 de maio de 2009. 



A descoberta de Luzia, o mais antigo esqueleto humano até o momento encontrado na América, seria suficiente para assegurar o ingresso da arqueologia brasileira na maioridade. Mas o estudo desse fóssil traria ainda duas revelações bombásticas. Sua idade, estimada entre 11.000 e 11.500 anos, desafiava o modelo hegemônico sobre o povoamento do continente, chamado de maneira simplificada de Clovis First.  Mais espetacular ainda, sua morfologia craniana nada tinha a ver com a mongoloide, característica dos atuais indígenas americanos, mas com a negroide, dos primeiros habitantes da África e da Austrália. Por conta de Luzia, o mineiro Walter Alves Neves, principal responsável pelo estudo dessa remota ancestral (inclusive pelo simpático nome que a popularizou), tornou-se uma celebridade internacional. Porém, teve que sustentar uma guerra prolongada contra os “clovistas”, que dominavam a arqueologia norte-americana e faziam de seu modelo um dogma opressivo. Graças a ele e outros, o modelo Clovis First  está hoje desacreditado e propostas de povoamento muito mais instigantes podem ser debatidas. Professor titular do Departamento de Genética e Biologia Evolutiva da Universidade de São Paulo, Neves, que acaba de publicar um livro destinado ao grande público sobre sua aventura científica, falou com muita descontração e bom humor a Le Monde Diplomatique Brasil.


A COR DE LUZIA.

Diplomatique: Quando pensei em entrevistá-lo, imaginei o seguinte título para a matéria: “No povoamento da América, o negro chegou primeiro”. Este tipo de afirmação se sustenta?




Walter Neves: Pode esquecer. Aliás, tem duas coisas que a imprensa poderia me ajudar a esclarecer, até porque foi ela que produziu o mal-entendido. Primeiro: afirmaram que eu teria dito, em algum paper, que os primeiros americanos vieram diretamente da Austrália para cá. Eu jamais disse isso. Nunca me passou pela cabeça. Inclusive porque essa tese já havia sido apresentada por Paul Rivet nos anos 1940, e foi massacrada. A partir de outros elementos, ele percebeu o mesmo que eu percebi, e propôs uma migração direta. Não há necessidade dela, porque a gente sabe que essas populações estavam na Ásia também. Elas podem, perfeitamente, ter entrado por cima, pela região que corresponde atualmente ao Estreito de Bering. Quando eu digo que os primeiros americanos são mais parecidos com os australianos e os africanos, não estou propondo uma migração direta da Austrália ou da África.



Diplomatique: E a segunda coisa?



Neves: A segunda coisa, na qual você pode me ajudar muito, é informar que a gente não tem a mais remota ideia da cor da pele de Luzia e de seu povo.  Quando uso o termo negroide, digo isto a partir do formato do crânio. Não da cor da pele. Nós não sabemos e nunca saberemos qual era a cor da pele dos primeiros americanos. Nada contra que fossem negros. Acho perfeito que fossem. Mas não temos evidência nenhuma.


O TIPO DE MIGRAÇÃO.


Diplomatique: Só um parêntesis. A Niède Guidon propõe uma migração direta, não é? Ou estou enganado?


Neves: O modelo que ela mais gosta é o da migração direta da África para cá.


Diplomatique: Via Atlântico?


Neves: Via Atlântico.


Diplomatique: Ainda quero falar da proposta de Niède. Mas, neste momento, gostaria de voltar ao seu modelo.


Neves: Você pode explicar perfeitamente o povoamento da América sem recorrer a travessias oceânicas, porque, antes dos asiáticos do tipo atual, que a gente chama de mongoloides, populações parecidas com os australianos e africanos estavam presentes na Ásia.


Diplomatique: Os adivasis, que existem até hoje na Índia, poderiam ser descendentes dessas populações?


Neves: Talvez. Mas a gente sabe que os mongoloides também surgiram a partir das populações de tipo australiano ou africano por meio de um processo de seleção natural causado pelo frio intenso.


Diplomatique: Pensei que fossem populações distintas.


Neves: Não. Alguns autores acham que possa ter havido uma contribuição europeia, pelo Norte. Mas a maioria acredita que a gênese da morfologia mongoloide se deu no nordeste asiático, a partir dessas populações mais antigas, de morfologia generalizada.


AS DIFERENCIAÇÕES RACIAIS


Diplomatique: Essa suposta diferenciação teria ocorrido em que época?

Neves: Isso é muito discutido. Existe pouco material na Ásia para uma datação precisa. Estima-se que tenha ocorrido por volta de 10 mil anos atrás.


Diplomatique: Tão recentemente assim?

Neves: Muito recentemente. Aliás, vou lhe dizer uma coisa, nós estamos descobrindo, cada dia mais, que o processo de raciação é muito tardio. Veja o caso dos famosos Cro-magnons, que são os primeiros europeus. Nós vamos lançar um paper mostrando que há uma grande identidade morfológica entre os Cro-magnons e os primeiros americanos. Por quê? Porque o homem surgiu na África. Da África, espalhou-se pelo mundo. Então, num primeiro momento, o planeta estava coberto por uma população original de tipo africano. Foi a submissão desses humanos a diferentes situações ambientais que deu origem ao processo de raciação. Quando digo que os primeiros europeus, os Cro-magnons, são muito parecidos com os primeiros americanos não estou afirmando que houve uma migração dos Cro-magnons para cá. A semelhança vem do fato de que todos nós repartimos um ancestral comum, que saiu da África por volta de 50 mil anos atrás. O mundo inteiro tinha essa cepa, que a gente chama de morfologia primitiva ou morfologia generalizada. As especializações morfológicas, ou seja, o processo de raciação, ocorreu bem depois.


A CRONOLOGIA

Diplomatique: Vamos pensar em uma seqüência cronológica.

Neves:  Vamos lá. O Homo sapiens surge na África há cerca de 200 mil anos. Alguns autores acham que possa ter havido uma expansão modesta há 120 mil ou 100 mil anos. Mas o que todo o mundo fecha mesmo é que nós saímos retumbantemente da África por volta de 50 mil anos atrás.


Diplomatique:  Isso significa que, até há 50 mil anos, não havia homens fora da África?

Neves: Homens do tipo Homo sapiens não. É claro que sempre existem dissidências, seja em relação a este, seja em relação a qualquer ponto de vista. Por exemplo, a Austrália está ocupada há, no mínimo, 45 mil anos. Alguns autores recuam o povoamento para 60 mil anos. Então, fica complicado você dizer que o homem só saiu da África há 50 mil anos. Mas, no geral, a grande saída, a saída retumbante, para todos os lados, ocorreu realmente por volta de 50 mil anos atrás. Há vestígios humanos na Europa com 36 mil, 34 mil anos. E vestígios na América com, pelo menos, 12 mil.


Diplomatique: Vamos retomar a cronologia.

Neves Então, há 200 mil anos, aparece o Homo sapiens na África. Há 50 mil anos, ele se generaliza pelo mundo. E, provavelmente, há 15 mil anos, começam os processos de raciação. No caso do nordeste da Ásia, que é o que nos interessa, os mongoloides devem ter surgido por volta de 10 mil anos atrás. Depois, entraram na América. A minha contribuição é mostrar que, antes desses mongoloides entrarem na América, já haviam entrado grupos constituídos por aqueles Homo sapiens de morfologia generalizada, semelhante à dos australianos e africanos. Quer dizer que, também na América, entrou esse estrato básico generalizado dos primeiros Homo sapiens. O que eu digo, em resumo, é que esses não mongoloides, que entraram na América, deram origem, na Ásia, aos mongoloides. E que os mongoloides, depois, entraram na América, também.

OS GRANDES DESLOCAMENTOS

Diplomatique: Qual é a sua hipótese para esses grandes deslocamentos humanos?

Neves: Crescimento demográfico e competição. Eu não gosto de usar a palavra “migração”. Migrações lineares, para destinos distantes, são coisas muito raras entre os seres humanos. O que ocorre, em primeiro lugar, é o crescimento demográfico; com o crescimento demográfico, surge a necessidade de ocupar novos territórios; com ocupações territoriais sucessivas, a população acaba se expandindo por vastas áreas. Você pode dizer que houve uma, duas ou três populações do Velho Mundo que contribuíram para formar os americanos. Agora, quantas levas migratórias entraram, isto nós não vamos saber nunca. Porque não houve um processo linear de migração.


Diplomatique: Foram deslocamentos muito lentos, muito pequenos, muito pontuais, que se somaram durante um longo período. É isso?

Neves: Exatamente. Exceto ao longo do litoral. Porque, como o litoral é uma faixa estreita, o grupo precisa rapidamente se fissionar e dar origem a outro grupo. Fissionar e criar um outro grupo. Então, as colonizações costeiras são sempre muito mais rápidas. E, neste caso, já existe uma linha de migração, um eixo a seguir.


Diplomatique: Dado pela própria topografia.

Neves: Exato. Pense no Istmo do Panamá, por exemplo. Nele, há pouquíssimos quilômetros entre as duas costas. Muito provavelmente, quando os grupos humanos chegaram ao Istmo do Panamá, uns escolheram continuar descendo pela costa do Pacífico, outros pela costa do Atlântico e outros por dentro da Amazônia. Existem sítios arqueológicos na Amazônia brasileira com datações de 11.300 anos.


Diplomatique: Com fósseis humanos?

Neves: Não. Sítios datados por carvão.


Diplomatique: Seu modelo, que se apoia no estudo da morfologia craniana, poderia ser corroborado pelo rastreamento do DNA?

Neves: Não necessariamente. Não é preciso supor uma diferença de DNA entre as duas hordas, porque a segunda originou-se da primeira. Então, ela pode ter conservado as mesmas imagens de DNA e ter mudado muito a morfologia. É a seleção natural agindo sobre as mutações.


Diplomatique: Esse raciocínio se aplica também ao Homem de Neanderthal?

Neves: É uma outra espécie, com desenvolvimento paralelo ao do homem moderno. De um mesmo ancestral africano, o Homo heidelbergensis, surgiu, no ambiente tropical da África, o Homo sapiens, e, nas regiões muito frias do norte europeu, o Homo neanderthalensis. Essas duas espécies aparecem mais ou menos ao mesmo tempo. Tanto é que os primeiros Neanderthais clássicos, completamente Neanderthais, são datados de 180 mil anos. Veja que coisa incrível: locais completamente distintos, mas com a temporalidade evolutiva muito próxima.

A ROTA PARA A AMÉRICA.


Diplomatique: Quero insistir em um ponto relativo ao povoamento da América: os dois grandes aportes humanos a que você se referiu, o dos negroides (vamos chamá-los assim para simplificar) e o dos mongoloides, teriam ocorrido, ambos, pelo Estreito de Bering?

Neves: Sim, ambos.


Diplomatique:  Foram, ambos, deslocamentos pedestres?

Neves: Não necessariamente. Como sabemos hoje que a América do Norte estava completamente coberta de gelo, estamos apostando muito na chamada via costeira. Com o interior congelado, populações dotadas de canoas muito primitivas, fazendo navegação de cabotagem, podem ter se deslocado ao longo do litoral, chegando ao noroeste da América do Norte, e, daí, descendo pela costa até a América do Sul. Isso explica, por exemplo, porque existe um sítio arqueológico de 12.300 anos no sul do Chile 


Diplomatique:  A navegação costeira teria facilitado o deslocamento?

Neves:  Exatamente. A navegação costeira permite uma expansão muito rápida. O sítio encontrado no Chile está a apenas 60 quilômetros da costa atual. Veja, não temos nenhuma evidência direta de que houve mesmo essa migração costeira. Mas está todo mundo apostando nela.


Diplomatique: Porque o interior estava intransitável.

Neves:  Sim. Antes, acreditava-se na existência de um corredor livre de gelo no oeste norte-americano. Hoje, sabemos que não foi assim. O gelo cobriu tudo. É por isso que estamos apostando na rota costeira.


Diplomatique: Não bastasse a descoberta do sítio chileno, o cenário de um interior completamente gelado já poria em xeque o modelo Clovis First, não é?

Neves: É...esse modelo que, durante três décadas, os norte-americanos tentaram enfiar goela abaixo dos sul-americanos.

A TEORIA CLOVIS EM XEQUE


Diplomatique: Qual é a data de Clóvis?

Neves: Até alguns meses atrás, falava-se em 11.400 anos. Agora, o sítio foi redatado para algo entre 11.200 e 10.800. Enquanto a idade de Clóvis diminui, surgem outros achados cada vez mais antigos. Além da descoberta do Chile, acabaram de encontrar uma “paleobosta” nos Estados Unidos com 12.400 anos.


Diplomatique: Fezes humanas?

Neves: Humanas. Fizeram a datação: 12.400 anos!


Diplomatique: Para você, isso é ótimo.

Neves: Ótimo, porque, quanto mais antiga tiver sido a migração para a América, mais provável se torna que aquela morfologia generalizada de origem africana tenha chegado aqui também.


Diplomatique:  Sabemos alguma coisa sobre a morfologia do povo de Clóvis?

Neves Nada. Não tem nenhum esqueleto humano claramente associado ao sítio.


Diplomatique Só restos líticos?

Neves: Restos líticos e da fauna que eles abatiam, processavam e comiam. Não temos a mais remota ideia da morfologia do grupo humano. Há duas alternativas. Uma que, de fato, Clóvis seja resultado da segunda ocupação, a ocupação mongolóide. A outra – apoiada agora pela maioria dos autores – que aqueles grupos de morfologia generalizada de origem africana tenham descido pela costa do Pacífico da América do Norte, toda coberta de geleiras, e que, mais ou menos onde fica hoje a divisa entre os Estados Unidos e o México, uma parte tenha podido se internalizar, porque lá não havia mais gelo. Na medida em que, devido à elevação da temperatura, as geleiras foram retrocedendo em direção ao Polo, as populações que se interiorizaram começaram a subir. Então, vamos dizer assim, Clóvis seria um rebote dos mesmos grupos que entraram no continente por volta de 13 mil anos atrás.


Diplomatique: O modelo Clovis First foi virado de cabeça para baixo.

Neves: Não é fantástico? Essa interiorização a que me referi teria sido a primeira. Muito provavelmente, do gelo para baixo, todas as vezes em que houve oportunidade, eles se interiorizaram. A restrição à costa só vale para o trecho coberto de gelo. Dali para baixo, eu acho que houve tanto o deslocamento costeiro quanto a interiorização. O deslocamento costeiro é sempre mais expresso, porque já existe uma organização linear norte-sul, uma faixa litorânea, limitada pelas cordilheiras, que facilita demais o movimento. E que, além disso, oferece recursos extremamente abundantes. Por isso, alguns autores acham que os primeiros habitantes percorreram todo o litoral do Pacífico para só depois começarem a se interiorizar. Eu acho que não. Acho que a interiorização ocorreu sempre que houve oportunidade. Senão a gente não explica as datas encontradas aqui.

OS VESTÍGIOS NO BRASIL E SUA DATAÇÃO


Diplomatique: Que datas são essas? Quais são os vestígios comprovadamente humanos mais antigos encontrados no território brasileiro?

Neves: Os do Vale do Peruaçu, no norte de Minas Gerais, estudados pelo André Prous 8. Foram datados entre 11 mil e 12 mil anos.


Diplomatique: E a idade de Luzia?

Neves: Nós não conseguimos estabelecer.


Diplomatique: Não?!

Neves: Não, porque, para você datar um osso, ele precisa ter conservado o colágeno. Um osso é, vamos dizer assim, uma matriz cartilaginosa de proteína que passa, depois, por um processo de mineralização. A mineralização confere a estrutura final ao osso, mas fica dentro dele um resíduo da matriz de matéria orgânica. É esse resíduo que responde ao teste do carbono 14. Se o osso perdeu esse resíduo, se o osso não tem colágeno, não há como datar. Agora, de uns três anos para cá, apuraram uma técnica para datar dentes humanos. Antes não se fazia isso porque o dente humano tem menos de 5 miligramas de colágeno e não havia aparelhagem capaz de datar uma quantidade tão pequena. Agora já existe. Então, eu estou negociando com o Museu Nacional do Rio de Janeiro para estabelecer definitivamente a idade de Luzia. Vamos sacrificar um dente dela e rezar para que dentro dele haja colágeno em quantidade suficiente. Nos ossos não tem colágeno. Isso nós já sabemos.


Diplomatique: Eu podia jurar que a datação havia sido feita.

NevesNão. O que houve foi um chute calculado. O sítio onde ela foi encontrada, a Lapa Vermelha 4, é um local de sedimentação extremamente homogênea. Então, quando escavamos a Lapa Vermelha 4, pudemos fazer um levantamento detalhado dos objetos. Pela idade dos vestígios encontrados pouco acima e pouco abaixo, dizemos, com relativa segurança, que Luzia deve ter entre 11.000 e 11.500 anos. Eu, pessoalmente, me inclino pelos 11 mil. É um chute. Porém, como o material foi muito bem escavado, e os estratos arqueológicos são todos horizontais, bonitinhos, eu acho que usar essa referência estratigráfica não foi uma solução ruim. Mas é claro que seria melhor se nós tivéssemos uma datação direta.  Agora, temos essa chance.


Diplomatique: E será por dente?

Neves: É. Se o Museu Nacional concordar em sacrificar. Porque a Luzia se tornou um ícone da pré-história brasileira.


Diplomatique: Não foram encontrados outros fósseis humanos nesse sítio?

Neves: Nesse sítio, não. Só a Luzia.


Diplomatique: E os outros fósseis com os quais você trabalhou?

Neves: São de outros sítios.


Diplomatique: Foram datados?

Neves: Eu datei vários. Meu último trabalho publicado apresenta uma relação de 31 crânios. Todos com cerca de 10 mil anos. Posso dizer que 99,99% dos esqueletos de Lagoa Santa já estão em museus. E que os que nós estamos escavando agora possuem idades na faixa dos 8 mil aos 10 mil anos, com uma maior expressão ao redor de 8.500. São todos de morfologia generalizada, não mongoloide.


Diplomatique: Pelo que você está dizendo, em todo o território americano, há poucos fósseis humanos nessa faixa cronológica fora da coleção de Lagoa Santa?

Neves: Tem uma boa amostra na Colômbia, com idades entre 6 mil e 11 mil anos. E, no México, existem vestígios de cinco esqueletos, com cerca de 10 mil. Todos eles mostram exatamente a mesma morfologia. Como é que eu vou explicar? Lagoa Santa e Bogotá são as duas grandes exceções. Foi onde realmente os paleoíndios sepultaram dezenas e dezenas de pessoas. Recentemente, a Niède encontrou um fóssil no Piauí. Na época, foi chamado de Zuzu, mas, na verdade, deveria ser Zulu, porque o esqueleto é de homem, não de mulher. Tem cerca de 9 mil anos. Nós mostramos, a Niède e eu, que esse fóssil possui exatamente a mesma morfologia generalizada de Luzia e dos demais esqueletos de Lagoa Santa. O grosso do material de Lagoa Santa já estava nos museus, mas ninguém nunca havia comprovado a antiguidade dele. Incrível, não? Para construir uma cronologia confiável para esses esqueletos, ou datando diretamente ou reescavando os sítios, gastamos cerca de 2 milhões de dólares. Isso mostra que, para fazer pesquisa competitiva, você tem que ter muito dinheiro. Se não fosse pela Fapesp 9, nós não teríamos como encarar os norte-americanos.

A TEORIA DE NIÈDE GUIDON

Diplomatique: Neste ponto, é inevitável voltar a Niède Guidon. Porque você fala em navegação de cabotagem. E ela propõe a travessia do Atlântico. Você trabalha durante duas décadas, gasta 2 milhões de dólares, enfrenta o maior bloqueio dos americanos para inserir os negroides no modelo e fazer a datação recuar em mil, dois mil anos. E ela sustenta que os primeiros habitantes chegarem diretamente da África, há...

Neves: Cem mil anos! Quando conversamos pela última vez, foi mais ou menos em cima desta data que ela se posicionou. Ela encontrou pedras que acredita terem sido usadas em fogueiras e que foram datadas em cem mil anos. Então, acha que tem evidências suficientes para propor um povoamento nessa faixa cronológica. Eu fui, durante 20 anos, o inimigo público número um das tais ferramentas líticas e fogueiras da Pedra Furada. Mas, em 2005, ela me convidou para visitá-la. Fomos eu e o geoarqueólogo do laboratório. Pedi para ver todos os achados líticos de Pedra Furada e ela me mostrou. Como tive uma boa formação em tecnologia lítica no início da carreira, eu me sentia preparado para ver aqueles objetos. E, realmente, saí 99% convencido de que se tratava de ferramentas feitas por humanos e que os carvões eram, de fato, restos de fogueiras. Isto até um nível de 32 mil, 34 mil anos atrás.


Diplomatique:  Mesmo que fossem 20 mil anos, isto já seria uma revolução!

Neves: É. Mas faltava 1% para eu ter certeza. Uma coisa que eu nunca entendi foi por que a Niède não convidou o maior especialista em tecnologia lítica para examinar seus achados. Ela podia ter feito isso há muito tempo: esses especialistas estão na França e ela tem as melhores relações com a arqueologia francesa. No ano passado, finalmente, veio um dos grandes especialistas franceses, viu o material e também chegou à conclusão de que eram humanos. Então, agora, eu estou 99,99% convencido. Mas, honestamente, não quero nem pensar no assunto. Porque é uma mudança tão grande de paradigma que eu não sei se tenho físico para aguentar.


Diplomatique: Pois, se isso for verdade...

Neves: Eu posso jogar fora tudo o que fiz! Nós estamos agora trabalhando com um esqueleto humano que ela achou recentemente e que desconfia que tem mais de 25 mil anos.


Diplomatique: Ah, então existe esse esqueleto?

Neves: Existe. Eu mandei datar duas vezes. Não tem colágeno. E também não tem dente. Mas, muito próximo do esqueleto, foi encontrada uma mandíbula de veado. Estão datando. O resultado deve chegar a qualquer momento. Porém, a gente percebeu que o processo de preenchimento da caverna foi muito mais complexo do que o pessoal da Niède pensava. Então, o fato de uma peça estar ao lado da outra não significa, necessariamente, que tenham a mesma data. Mas estamos estudando. Porque, se realmente conseguirmos provar, mesmo que só estratigraficamente, que esse esqueleto tenha, não precisam ser 25 mil anos, basta que sejam 13 mil, isso já será um arraso, você me entende?