domingo, 23 de fevereiro de 2014

No rastro do Povo de Luzia.



A entrevista abaixo foi publicada no dia 04 de maio de 2009. 



A descoberta de Luzia, o mais antigo esqueleto humano até o momento encontrado na América, seria suficiente para assegurar o ingresso da arqueologia brasileira na maioridade. Mas o estudo desse fóssil traria ainda duas revelações bombásticas. Sua idade, estimada entre 11.000 e 11.500 anos, desafiava o modelo hegemônico sobre o povoamento do continente, chamado de maneira simplificada de Clovis First.  Mais espetacular ainda, sua morfologia craniana nada tinha a ver com a mongoloide, característica dos atuais indígenas americanos, mas com a negroide, dos primeiros habitantes da África e da Austrália. Por conta de Luzia, o mineiro Walter Alves Neves, principal responsável pelo estudo dessa remota ancestral (inclusive pelo simpático nome que a popularizou), tornou-se uma celebridade internacional. Porém, teve que sustentar uma guerra prolongada contra os “clovistas”, que dominavam a arqueologia norte-americana e faziam de seu modelo um dogma opressivo. Graças a ele e outros, o modelo Clovis First  está hoje desacreditado e propostas de povoamento muito mais instigantes podem ser debatidas. Professor titular do Departamento de Genética e Biologia Evolutiva da Universidade de São Paulo, Neves, que acaba de publicar um livro destinado ao grande público sobre sua aventura científica, falou com muita descontração e bom humor a Le Monde Diplomatique Brasil.


A COR DE LUZIA.

Diplomatique: Quando pensei em entrevistá-lo, imaginei o seguinte título para a matéria: “No povoamento da América, o negro chegou primeiro”. Este tipo de afirmação se sustenta?




Walter Neves: Pode esquecer. Aliás, tem duas coisas que a imprensa poderia me ajudar a esclarecer, até porque foi ela que produziu o mal-entendido. Primeiro: afirmaram que eu teria dito, em algum paper, que os primeiros americanos vieram diretamente da Austrália para cá. Eu jamais disse isso. Nunca me passou pela cabeça. Inclusive porque essa tese já havia sido apresentada por Paul Rivet nos anos 1940, e foi massacrada. A partir de outros elementos, ele percebeu o mesmo que eu percebi, e propôs uma migração direta. Não há necessidade dela, porque a gente sabe que essas populações estavam na Ásia também. Elas podem, perfeitamente, ter entrado por cima, pela região que corresponde atualmente ao Estreito de Bering. Quando eu digo que os primeiros americanos são mais parecidos com os australianos e os africanos, não estou propondo uma migração direta da Austrália ou da África.



Diplomatique: E a segunda coisa?



Neves: A segunda coisa, na qual você pode me ajudar muito, é informar que a gente não tem a mais remota ideia da cor da pele de Luzia e de seu povo.  Quando uso o termo negroide, digo isto a partir do formato do crânio. Não da cor da pele. Nós não sabemos e nunca saberemos qual era a cor da pele dos primeiros americanos. Nada contra que fossem negros. Acho perfeito que fossem. Mas não temos evidência nenhuma.


O TIPO DE MIGRAÇÃO.


Diplomatique: Só um parêntesis. A Niède Guidon propõe uma migração direta, não é? Ou estou enganado?


Neves: O modelo que ela mais gosta é o da migração direta da África para cá.


Diplomatique: Via Atlântico?


Neves: Via Atlântico.


Diplomatique: Ainda quero falar da proposta de Niède. Mas, neste momento, gostaria de voltar ao seu modelo.


Neves: Você pode explicar perfeitamente o povoamento da América sem recorrer a travessias oceânicas, porque, antes dos asiáticos do tipo atual, que a gente chama de mongoloides, populações parecidas com os australianos e africanos estavam presentes na Ásia.


Diplomatique: Os adivasis, que existem até hoje na Índia, poderiam ser descendentes dessas populações?


Neves: Talvez. Mas a gente sabe que os mongoloides também surgiram a partir das populações de tipo australiano ou africano por meio de um processo de seleção natural causado pelo frio intenso.


Diplomatique: Pensei que fossem populações distintas.


Neves: Não. Alguns autores acham que possa ter havido uma contribuição europeia, pelo Norte. Mas a maioria acredita que a gênese da morfologia mongoloide se deu no nordeste asiático, a partir dessas populações mais antigas, de morfologia generalizada.


AS DIFERENCIAÇÕES RACIAIS


Diplomatique: Essa suposta diferenciação teria ocorrido em que época?

Neves: Isso é muito discutido. Existe pouco material na Ásia para uma datação precisa. Estima-se que tenha ocorrido por volta de 10 mil anos atrás.


Diplomatique: Tão recentemente assim?

Neves: Muito recentemente. Aliás, vou lhe dizer uma coisa, nós estamos descobrindo, cada dia mais, que o processo de raciação é muito tardio. Veja o caso dos famosos Cro-magnons, que são os primeiros europeus. Nós vamos lançar um paper mostrando que há uma grande identidade morfológica entre os Cro-magnons e os primeiros americanos. Por quê? Porque o homem surgiu na África. Da África, espalhou-se pelo mundo. Então, num primeiro momento, o planeta estava coberto por uma população original de tipo africano. Foi a submissão desses humanos a diferentes situações ambientais que deu origem ao processo de raciação. Quando digo que os primeiros europeus, os Cro-magnons, são muito parecidos com os primeiros americanos não estou afirmando que houve uma migração dos Cro-magnons para cá. A semelhança vem do fato de que todos nós repartimos um ancestral comum, que saiu da África por volta de 50 mil anos atrás. O mundo inteiro tinha essa cepa, que a gente chama de morfologia primitiva ou morfologia generalizada. As especializações morfológicas, ou seja, o processo de raciação, ocorreu bem depois.


A CRONOLOGIA

Diplomatique: Vamos pensar em uma seqüência cronológica.

Neves:  Vamos lá. O Homo sapiens surge na África há cerca de 200 mil anos. Alguns autores acham que possa ter havido uma expansão modesta há 120 mil ou 100 mil anos. Mas o que todo o mundo fecha mesmo é que nós saímos retumbantemente da África por volta de 50 mil anos atrás.


Diplomatique:  Isso significa que, até há 50 mil anos, não havia homens fora da África?

Neves: Homens do tipo Homo sapiens não. É claro que sempre existem dissidências, seja em relação a este, seja em relação a qualquer ponto de vista. Por exemplo, a Austrália está ocupada há, no mínimo, 45 mil anos. Alguns autores recuam o povoamento para 60 mil anos. Então, fica complicado você dizer que o homem só saiu da África há 50 mil anos. Mas, no geral, a grande saída, a saída retumbante, para todos os lados, ocorreu realmente por volta de 50 mil anos atrás. Há vestígios humanos na Europa com 36 mil, 34 mil anos. E vestígios na América com, pelo menos, 12 mil.


Diplomatique: Vamos retomar a cronologia.

Neves Então, há 200 mil anos, aparece o Homo sapiens na África. Há 50 mil anos, ele se generaliza pelo mundo. E, provavelmente, há 15 mil anos, começam os processos de raciação. No caso do nordeste da Ásia, que é o que nos interessa, os mongoloides devem ter surgido por volta de 10 mil anos atrás. Depois, entraram na América. A minha contribuição é mostrar que, antes desses mongoloides entrarem na América, já haviam entrado grupos constituídos por aqueles Homo sapiens de morfologia generalizada, semelhante à dos australianos e africanos. Quer dizer que, também na América, entrou esse estrato básico generalizado dos primeiros Homo sapiens. O que eu digo, em resumo, é que esses não mongoloides, que entraram na América, deram origem, na Ásia, aos mongoloides. E que os mongoloides, depois, entraram na América, também.

OS GRANDES DESLOCAMENTOS

Diplomatique: Qual é a sua hipótese para esses grandes deslocamentos humanos?

Neves: Crescimento demográfico e competição. Eu não gosto de usar a palavra “migração”. Migrações lineares, para destinos distantes, são coisas muito raras entre os seres humanos. O que ocorre, em primeiro lugar, é o crescimento demográfico; com o crescimento demográfico, surge a necessidade de ocupar novos territórios; com ocupações territoriais sucessivas, a população acaba se expandindo por vastas áreas. Você pode dizer que houve uma, duas ou três populações do Velho Mundo que contribuíram para formar os americanos. Agora, quantas levas migratórias entraram, isto nós não vamos saber nunca. Porque não houve um processo linear de migração.


Diplomatique: Foram deslocamentos muito lentos, muito pequenos, muito pontuais, que se somaram durante um longo período. É isso?

Neves: Exatamente. Exceto ao longo do litoral. Porque, como o litoral é uma faixa estreita, o grupo precisa rapidamente se fissionar e dar origem a outro grupo. Fissionar e criar um outro grupo. Então, as colonizações costeiras são sempre muito mais rápidas. E, neste caso, já existe uma linha de migração, um eixo a seguir.


Diplomatique: Dado pela própria topografia.

Neves: Exato. Pense no Istmo do Panamá, por exemplo. Nele, há pouquíssimos quilômetros entre as duas costas. Muito provavelmente, quando os grupos humanos chegaram ao Istmo do Panamá, uns escolheram continuar descendo pela costa do Pacífico, outros pela costa do Atlântico e outros por dentro da Amazônia. Existem sítios arqueológicos na Amazônia brasileira com datações de 11.300 anos.


Diplomatique: Com fósseis humanos?

Neves: Não. Sítios datados por carvão.


Diplomatique: Seu modelo, que se apoia no estudo da morfologia craniana, poderia ser corroborado pelo rastreamento do DNA?

Neves: Não necessariamente. Não é preciso supor uma diferença de DNA entre as duas hordas, porque a segunda originou-se da primeira. Então, ela pode ter conservado as mesmas imagens de DNA e ter mudado muito a morfologia. É a seleção natural agindo sobre as mutações.


Diplomatique: Esse raciocínio se aplica também ao Homem de Neanderthal?

Neves: É uma outra espécie, com desenvolvimento paralelo ao do homem moderno. De um mesmo ancestral africano, o Homo heidelbergensis, surgiu, no ambiente tropical da África, o Homo sapiens, e, nas regiões muito frias do norte europeu, o Homo neanderthalensis. Essas duas espécies aparecem mais ou menos ao mesmo tempo. Tanto é que os primeiros Neanderthais clássicos, completamente Neanderthais, são datados de 180 mil anos. Veja que coisa incrível: locais completamente distintos, mas com a temporalidade evolutiva muito próxima.

A ROTA PARA A AMÉRICA.


Diplomatique: Quero insistir em um ponto relativo ao povoamento da América: os dois grandes aportes humanos a que você se referiu, o dos negroides (vamos chamá-los assim para simplificar) e o dos mongoloides, teriam ocorrido, ambos, pelo Estreito de Bering?

Neves: Sim, ambos.


Diplomatique:  Foram, ambos, deslocamentos pedestres?

Neves: Não necessariamente. Como sabemos hoje que a América do Norte estava completamente coberta de gelo, estamos apostando muito na chamada via costeira. Com o interior congelado, populações dotadas de canoas muito primitivas, fazendo navegação de cabotagem, podem ter se deslocado ao longo do litoral, chegando ao noroeste da América do Norte, e, daí, descendo pela costa até a América do Sul. Isso explica, por exemplo, porque existe um sítio arqueológico de 12.300 anos no sul do Chile 


Diplomatique:  A navegação costeira teria facilitado o deslocamento?

Neves:  Exatamente. A navegação costeira permite uma expansão muito rápida. O sítio encontrado no Chile está a apenas 60 quilômetros da costa atual. Veja, não temos nenhuma evidência direta de que houve mesmo essa migração costeira. Mas está todo mundo apostando nela.


Diplomatique: Porque o interior estava intransitável.

Neves:  Sim. Antes, acreditava-se na existência de um corredor livre de gelo no oeste norte-americano. Hoje, sabemos que não foi assim. O gelo cobriu tudo. É por isso que estamos apostando na rota costeira.


Diplomatique: Não bastasse a descoberta do sítio chileno, o cenário de um interior completamente gelado já poria em xeque o modelo Clovis First, não é?

Neves: É...esse modelo que, durante três décadas, os norte-americanos tentaram enfiar goela abaixo dos sul-americanos.

A TEORIA CLOVIS EM XEQUE


Diplomatique: Qual é a data de Clóvis?

Neves: Até alguns meses atrás, falava-se em 11.400 anos. Agora, o sítio foi redatado para algo entre 11.200 e 10.800. Enquanto a idade de Clóvis diminui, surgem outros achados cada vez mais antigos. Além da descoberta do Chile, acabaram de encontrar uma “paleobosta” nos Estados Unidos com 12.400 anos.


Diplomatique: Fezes humanas?

Neves: Humanas. Fizeram a datação: 12.400 anos!


Diplomatique: Para você, isso é ótimo.

Neves: Ótimo, porque, quanto mais antiga tiver sido a migração para a América, mais provável se torna que aquela morfologia generalizada de origem africana tenha chegado aqui também.


Diplomatique:  Sabemos alguma coisa sobre a morfologia do povo de Clóvis?

Neves Nada. Não tem nenhum esqueleto humano claramente associado ao sítio.


Diplomatique Só restos líticos?

Neves: Restos líticos e da fauna que eles abatiam, processavam e comiam. Não temos a mais remota ideia da morfologia do grupo humano. Há duas alternativas. Uma que, de fato, Clóvis seja resultado da segunda ocupação, a ocupação mongolóide. A outra – apoiada agora pela maioria dos autores – que aqueles grupos de morfologia generalizada de origem africana tenham descido pela costa do Pacífico da América do Norte, toda coberta de geleiras, e que, mais ou menos onde fica hoje a divisa entre os Estados Unidos e o México, uma parte tenha podido se internalizar, porque lá não havia mais gelo. Na medida em que, devido à elevação da temperatura, as geleiras foram retrocedendo em direção ao Polo, as populações que se interiorizaram começaram a subir. Então, vamos dizer assim, Clóvis seria um rebote dos mesmos grupos que entraram no continente por volta de 13 mil anos atrás.


Diplomatique: O modelo Clovis First foi virado de cabeça para baixo.

Neves: Não é fantástico? Essa interiorização a que me referi teria sido a primeira. Muito provavelmente, do gelo para baixo, todas as vezes em que houve oportunidade, eles se interiorizaram. A restrição à costa só vale para o trecho coberto de gelo. Dali para baixo, eu acho que houve tanto o deslocamento costeiro quanto a interiorização. O deslocamento costeiro é sempre mais expresso, porque já existe uma organização linear norte-sul, uma faixa litorânea, limitada pelas cordilheiras, que facilita demais o movimento. E que, além disso, oferece recursos extremamente abundantes. Por isso, alguns autores acham que os primeiros habitantes percorreram todo o litoral do Pacífico para só depois começarem a se interiorizar. Eu acho que não. Acho que a interiorização ocorreu sempre que houve oportunidade. Senão a gente não explica as datas encontradas aqui.

OS VESTÍGIOS NO BRASIL E SUA DATAÇÃO


Diplomatique: Que datas são essas? Quais são os vestígios comprovadamente humanos mais antigos encontrados no território brasileiro?

Neves: Os do Vale do Peruaçu, no norte de Minas Gerais, estudados pelo André Prous 8. Foram datados entre 11 mil e 12 mil anos.


Diplomatique: E a idade de Luzia?

Neves: Nós não conseguimos estabelecer.


Diplomatique: Não?!

Neves: Não, porque, para você datar um osso, ele precisa ter conservado o colágeno. Um osso é, vamos dizer assim, uma matriz cartilaginosa de proteína que passa, depois, por um processo de mineralização. A mineralização confere a estrutura final ao osso, mas fica dentro dele um resíduo da matriz de matéria orgânica. É esse resíduo que responde ao teste do carbono 14. Se o osso perdeu esse resíduo, se o osso não tem colágeno, não há como datar. Agora, de uns três anos para cá, apuraram uma técnica para datar dentes humanos. Antes não se fazia isso porque o dente humano tem menos de 5 miligramas de colágeno e não havia aparelhagem capaz de datar uma quantidade tão pequena. Agora já existe. Então, eu estou negociando com o Museu Nacional do Rio de Janeiro para estabelecer definitivamente a idade de Luzia. Vamos sacrificar um dente dela e rezar para que dentro dele haja colágeno em quantidade suficiente. Nos ossos não tem colágeno. Isso nós já sabemos.


Diplomatique: Eu podia jurar que a datação havia sido feita.

NevesNão. O que houve foi um chute calculado. O sítio onde ela foi encontrada, a Lapa Vermelha 4, é um local de sedimentação extremamente homogênea. Então, quando escavamos a Lapa Vermelha 4, pudemos fazer um levantamento detalhado dos objetos. Pela idade dos vestígios encontrados pouco acima e pouco abaixo, dizemos, com relativa segurança, que Luzia deve ter entre 11.000 e 11.500 anos. Eu, pessoalmente, me inclino pelos 11 mil. É um chute. Porém, como o material foi muito bem escavado, e os estratos arqueológicos são todos horizontais, bonitinhos, eu acho que usar essa referência estratigráfica não foi uma solução ruim. Mas é claro que seria melhor se nós tivéssemos uma datação direta.  Agora, temos essa chance.


Diplomatique: E será por dente?

Neves: É. Se o Museu Nacional concordar em sacrificar. Porque a Luzia se tornou um ícone da pré-história brasileira.


Diplomatique: Não foram encontrados outros fósseis humanos nesse sítio?

Neves: Nesse sítio, não. Só a Luzia.


Diplomatique: E os outros fósseis com os quais você trabalhou?

Neves: São de outros sítios.


Diplomatique: Foram datados?

Neves: Eu datei vários. Meu último trabalho publicado apresenta uma relação de 31 crânios. Todos com cerca de 10 mil anos. Posso dizer que 99,99% dos esqueletos de Lagoa Santa já estão em museus. E que os que nós estamos escavando agora possuem idades na faixa dos 8 mil aos 10 mil anos, com uma maior expressão ao redor de 8.500. São todos de morfologia generalizada, não mongoloide.


Diplomatique: Pelo que você está dizendo, em todo o território americano, há poucos fósseis humanos nessa faixa cronológica fora da coleção de Lagoa Santa?

Neves: Tem uma boa amostra na Colômbia, com idades entre 6 mil e 11 mil anos. E, no México, existem vestígios de cinco esqueletos, com cerca de 10 mil. Todos eles mostram exatamente a mesma morfologia. Como é que eu vou explicar? Lagoa Santa e Bogotá são as duas grandes exceções. Foi onde realmente os paleoíndios sepultaram dezenas e dezenas de pessoas. Recentemente, a Niède encontrou um fóssil no Piauí. Na época, foi chamado de Zuzu, mas, na verdade, deveria ser Zulu, porque o esqueleto é de homem, não de mulher. Tem cerca de 9 mil anos. Nós mostramos, a Niède e eu, que esse fóssil possui exatamente a mesma morfologia generalizada de Luzia e dos demais esqueletos de Lagoa Santa. O grosso do material de Lagoa Santa já estava nos museus, mas ninguém nunca havia comprovado a antiguidade dele. Incrível, não? Para construir uma cronologia confiável para esses esqueletos, ou datando diretamente ou reescavando os sítios, gastamos cerca de 2 milhões de dólares. Isso mostra que, para fazer pesquisa competitiva, você tem que ter muito dinheiro. Se não fosse pela Fapesp 9, nós não teríamos como encarar os norte-americanos.

A TEORIA DE NIÈDE GUIDON

Diplomatique: Neste ponto, é inevitável voltar a Niède Guidon. Porque você fala em navegação de cabotagem. E ela propõe a travessia do Atlântico. Você trabalha durante duas décadas, gasta 2 milhões de dólares, enfrenta o maior bloqueio dos americanos para inserir os negroides no modelo e fazer a datação recuar em mil, dois mil anos. E ela sustenta que os primeiros habitantes chegarem diretamente da África, há...

Neves: Cem mil anos! Quando conversamos pela última vez, foi mais ou menos em cima desta data que ela se posicionou. Ela encontrou pedras que acredita terem sido usadas em fogueiras e que foram datadas em cem mil anos. Então, acha que tem evidências suficientes para propor um povoamento nessa faixa cronológica. Eu fui, durante 20 anos, o inimigo público número um das tais ferramentas líticas e fogueiras da Pedra Furada. Mas, em 2005, ela me convidou para visitá-la. Fomos eu e o geoarqueólogo do laboratório. Pedi para ver todos os achados líticos de Pedra Furada e ela me mostrou. Como tive uma boa formação em tecnologia lítica no início da carreira, eu me sentia preparado para ver aqueles objetos. E, realmente, saí 99% convencido de que se tratava de ferramentas feitas por humanos e que os carvões eram, de fato, restos de fogueiras. Isto até um nível de 32 mil, 34 mil anos atrás.


Diplomatique:  Mesmo que fossem 20 mil anos, isto já seria uma revolução!

Neves: É. Mas faltava 1% para eu ter certeza. Uma coisa que eu nunca entendi foi por que a Niède não convidou o maior especialista em tecnologia lítica para examinar seus achados. Ela podia ter feito isso há muito tempo: esses especialistas estão na França e ela tem as melhores relações com a arqueologia francesa. No ano passado, finalmente, veio um dos grandes especialistas franceses, viu o material e também chegou à conclusão de que eram humanos. Então, agora, eu estou 99,99% convencido. Mas, honestamente, não quero nem pensar no assunto. Porque é uma mudança tão grande de paradigma que eu não sei se tenho físico para aguentar.


Diplomatique: Pois, se isso for verdade...

Neves: Eu posso jogar fora tudo o que fiz! Nós estamos agora trabalhando com um esqueleto humano que ela achou recentemente e que desconfia que tem mais de 25 mil anos.


Diplomatique: Ah, então existe esse esqueleto?

Neves: Existe. Eu mandei datar duas vezes. Não tem colágeno. E também não tem dente. Mas, muito próximo do esqueleto, foi encontrada uma mandíbula de veado. Estão datando. O resultado deve chegar a qualquer momento. Porém, a gente percebeu que o processo de preenchimento da caverna foi muito mais complexo do que o pessoal da Niède pensava. Então, o fato de uma peça estar ao lado da outra não significa, necessariamente, que tenham a mesma data. Mas estamos estudando. Porque, se realmente conseguirmos provar, mesmo que só estratigraficamente, que esse esqueleto tenha, não precisam ser 25 mil anos, basta que sejam 13 mil, isso já será um arraso, você me entende?



sexta-feira, 14 de fevereiro de 2014

Os pioneiros das Américas





Leiam, abaixo, trecho de um artigo publicado em 2005 na revista Nossa História.

ACHADOS MOSTRAM QUE OS PRIMEIROS HABITANTES DO CONTINENTE SE PARECIAM MAIS COM OS POVOS DA AUSTRÁLIA E DA AFRICA DO QUE COM OS ÍNDIOS ATUAIS.



Eles foram os primeiros humanos a conhecerem as nossas terras. Se você está pensando nos portugueses, errou feio. Se nos índios, falhou novamente! Fisicamente eram semelhantes aos aborígenes australianos. Melhor pensar nos kung, da África do Sul, popularizados pelo filme Os deuses devem estar loucos. Trata-se do povo de Luzia. Sabemos agora que eles ocupavam toda a América Central e do Sul, e muito provavelmente a do norte também. Seus hábitos, organização social e estilo de vida eram parecidos com os dos índios atuais. Mas não eram agricultores: viviam exclusivamente da caça, da pesca e da coleta de vegetais e de outros produtos silvestres. No entanto, o que os distingue realmente dos indígenas que Cabral encontrou por aqui é sua biologia.

Os índios que vivem no Brasil e seus ancestrais remotos – que chegaram ao nosso continente há não muito mais do que 11 mil anos – são caracterizados por uma morfologia craniana (forma e feição da cabeça) similar aos asiáticos: mongóis, chineses e japoneses, por exemplo, denominados coletivamente como povos mongolóides. Já a feição dos primeiros americanos, que muito provavelmente chegaram ao Novo Mundo por volta de 13 ou 14 mil anos, era muito mais similar à dos australianos e africanos atuais. Sua morfologia craniana é denominada de “paleo-americana” (ou “australo-melanésia” no Velho Mundo). Não é correto chamá-los de “negróides”, já que não temos a menor ideia da cor da pele desses pioneiros. Essa é uma característica que passa por mudanças evolutivas muito rápidas, por ser uma resposta adaptativa à intensidade de insolação.

Mas uma coisa é certa. Estes povos também vieram da Ásia e entraram pelo estreito de Bering, que um dia já uniu o extremo norte do Alasca e da Sibéria. Mais tarde, os ancestrais dos índios atuais usaram a mesma rota. Pouca gente sabe, mas no leste da Ásia, antes do aparecimento da morfologia mongolóide, viveram povos similares aos autralo-melanésios de hoje e, portanto, muito parecidos com os paleo-americanos do passado.
Alguns autores acreditam que a morfologia mongolóide, caracterizada por uma cabeça arredondada, associada a uma face plana e larga, foi resultado da ação do frio intenso do norte asiático sobre a morfologia australo-melanésia. (caracterizada por uma cabeça oval, com a face projetada para frente e estreita). Outros acham que o fenômeno pode ter envolvido uma contribuição genética de europeus que chegaram à Sibéria pelo norte da Europa. De qualquer forma, há um certo consenso de que tal evolução se deu muito provavelmente entre o final do Plesistoceno e o início do Holoceno, em torno de 10 mil anos atrás. Por isso, não é necessário pensar em hipóteses mirabolantes, como por exemplo migrações pelo oceano da Austrália para a América do Sul, para explicar a presença no Novo Mundo de humanos similares aos aborígenes.

Este quadro começou a ser montado no final dos anos 80. Um de nós (Walter Neves), juntamente com o bio-antropólogo argentino Hector Pucciarelli, da Universidade de La Plata, analisou uma pequena amostra de crânios supostamente muito antigos, exumados pelo naturalista dinamarquês Peter Lund, na Gruta do Sumidouro, em Lagoa Santa, Minas Gerais, em meados do século XIX, comparando-os com esqueletos dos cinco continentes.

Walter Neves e Mark Hubbe; Revista Nossa História; Ano 2/n° 22; agosto de 2005. Págs 16 e 17.



Avaliando a compreensão do texto.

Há poucas certezas sobre o povoamento do continente americano. No entanto, as certezas que existem podem nos ajudar a compreender um pouco melhor esse assunto. Entre as certezas, destaco: a origem alóctone desses grupos, ou seja, os grupos humanos que ocuaparam a América são oriundo de outros continentes, como você pode observar no mapa que está no post abaixo. Além disso, esses grupos eram formados por humanos, isto é, já pertenciam ao gênero Homo e à espécie Sapiens. Não há dúvida também que houve duas ondas migratórias para a América. Uma mais antiga - a do povo de Luzia - e uma mais recente, que deu origem aos índígenas americanos. Finalmente, os cientistas acreditam firmemente que foi pelo estreito de Bering que esses grupos chegaram. 

Tais certezas, contudo, não impedem que perguntas importantes sobre o povoamento da América ainda não tenham uma resposta conclusiva. Por exemplo: em que época esses grupos chegaram? Há 15, 20 ou 30 mil anos? Há mais tempo que isso? Teria sido a rota pelo estreito de Bering a única rota de entrada? Há um grupo de cientistas que defendem a rota do Pacífico, embora essa hipótese seja bastante criticada pela maioria da comunidade científica.

Assistam a este vídeo


terça-feira, 11 de fevereiro de 2014

A Origem da Humanidade

A Origem da Humanidade.




Quando se estuda a origem da humanidade um certo conflito se estabelece entre o que diz a Ciência e o que afirma as religiões. Por isso, quero esclarecer que o que vamos estudar a partir de agora é a explicação científica para a origem da humanidade. Sua Fé, ou sua convicção religiosa merece o nosso total respeito, e você está livre para discordar desse, daquele ou de todos os pontos. No entanto, discordar de uma explicação não implica ignorá-la, ou, simplesmente, dizer que se recusa a conhecê-la e discuti-la.

Não é nosso objetivo, com a explicação científica para a origem da humanidade, abalar suas convições de Fé. Nosso objetivo é mostrar que existe uma explicação científica para o surgimento dos grupos humanos, apenas isso.

No mapa abaixo, aparecem os locais onde foram encontrados os vestígios dos australopithecus:



Para os cientistas, há milhoes de anos, no continente africano, surgiram os primeiros hominídeos (nome que os cientistas dão aos ancestrais do homem moderno). Basicamente, os homínideos se dividem em dois grupos: o gênero Australopithecus e o gênero Homo. Na escala evolutiva, os hominídeos do gênero homo são mais recentes. A raça humana, por exemplo, pertence ao gênero Homo e à espécie sapiens. Vejam a figura abaixo.

Como distinguir um gênero do outro? Ou mesmo uma espécie da outra? Há várias formas. A mais conhecida, contudo, é aquela que avalia a capacidade craniana dos hominídeos. Geralmente, quanto maior a capacidade mais desenvolvido é o gênero ou a espécie do homínideo. Dessa forma, o crânio de um Australopithecus será menor que a de um Homo. 

Um equívoco comum entre os alunos é imaginar que cada nova espécie de hominídeo aparece quando a anterior desapareceu. É um erro. Há muitas evidências de que espécies diferentes tenham coexistido. O que explica a sobrevivência de uma espécie em relação a outra é o conceito de evolucionismo, criado por Charles Darwin em 1859, no livro  A Origem das Espécies.

Como os cientistas chegam à data dos fósseis encontrados? Há várias técnicas de datação de um fóssil. Uma das técnicas mais conhecidas é a do Carbono 14, que você pode saber mais lendo o box que está na página 9 do seu livro de história. A outra é a da Termoluminescência. A primeira é mais adequada para vestígios orgânicos, de até 70 mil anos, e a outra para os inorgânicos.

Além dessas técnicas, há a chamada datação indireta. Quando um artefato ou fóssil é encontrado numa camada geológica, os cientistas atribuem àquele artefato ou fóssil a idade da camada geológica. Essa é uma típica técnica de datação indireta.

Sobre o assunto recomendo os dois links abaixo.

1 - Mais um parente?

2 - Como nascem as hipóteses...