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QUADRO
CLÁSSICO Domingos Jorge Velho e o Loco-tenente Antônio Fernandes Abreu,
de 1903, é idealização do pintor Benedito Calixto. | |
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Um herói. É esse o modelo que transpira da pose altiva, do olhar
penetrante, das armas novas e da roupa impecável do bandeirante Domingos
Jorge Velho, retratado por Benedito Calixto na pintura que inicia esse post. Mas o desbravador não era branco, e sim mameluco, fruto da
mestiçagem entre portugueses e índios. Usava tão bem o arcabuz, sua arma
de fogo, quanto o arco e a flecha, que aprendeu a manusear com os
nativos. Falava mais tupi do que português, como a maioria dos
paulistas. E ainda tinha sete esposas índias.
"Muitas vezes, encontrei nas obras escolares o mesmo tom triunfalista
da pintura de Calixto, com os bandeirantes aparecendo como indivíduos
corajosos e patrióticos, que tinham como objetivo expandir o território
nacional. Esse tipo de ocorrência diminuiu na produção dos últimos 20
anos, mas ainda existe", explica Manuel Pacheco Neto, autor de duas teses sobre os bandeirantes.
Nas últimas duas décadas, a análise cuidadosa dos registros de época
ajudou a contar outra versão dos fatos. Já há consenso entre os
historiadores, por exemplo, sobre os objetivos principais das bandeiras
dos séculos 17 e 18. Longe de buscar conscientemente a ampliação do
território em nome de um suposto nacionalismo, o que os desbravadores
tinham como meta era buscar metais preciosos e aprisionar índios. Depois
de capturados, os nativos eram vendidos para trabalhar nos canaviais do
Nordeste ou usados como mão-de-obra particular dos paulistas. No seu
encalço, os sertanistas andavam enormes distâncias mata adentro - Raposo
Tavares, por exemplo, percorreu 12 mil quilômetros durante três anos.
Isso tudo seria impossível se os
bandeirantes não tivessem a ajuda dos índios, que acompanhavam os
paulistas em suas andanças ou até colaboravam na captura de membros de
suas próprias tribos (é importante ressaltar esse fato como exemplo de
que personagens históricos são figuras complexas e até contraditórias,
traços que acabam escondidos quando se ensina História por
generalizações). Foram os indígenas que guiaram os sertanistas pelas
trilhas desconhecidas e os ensinaram a andar descalços. "Eles mostraram
uma pisada específica que evitava lesões e possibilitava percorrer
distâncias maiores. A própria descoberta de ouro em Cuiabá foi feita não
por bandeirantes, mas por dois índios coletores de mel", explica
Pacheco Neto.
Objetivos X conseqüências
Com
viagens tão longas, era quase inevitável que os sertanistas acabassem
aumentando o território da colônia ao desrespeitar o Tratado de
Tordesilhas, acordo firmado por Portugal e Espanha em 1494 para
delimitar a extensão de terras que cabia a cada país. "Os sertanistas
contribuíram, sim, para o estabelecimento das dimensões territoriais do
Brasil atual, mas foram movidos pelo desejo de sobrevivência. Como
naquela época a ocupação dava o direito sobre a terra, os bandeirantes
acabaram fazendo um favor a Portugal mesmo sem ter esse intuito", diz o
historiador John Monteiro, da Universidade Estadual de Campinas.
A revisão histórica também jogou luz sobre a brutalidade dos
desbravadores. A visão vem sobretudo dos registros históricos feitos por
jesuítas que assistiram as matanças. Os religiosos relatam que, quando
chegavam ao seu destino - geralmente, missões jesuíticas apinhadas de
índios -, os sertanistas faziam ataques-surpresa e matavam uma enorme
quantidade de indígenas apenas para causar terror e evitar que os
remanescentes resistissem. Decapitações e esquartejamentos eram
estratégias comuns. O jesuíta Antonio Ruiz de Montoya descreveu com
horror uma dessas invasões: "(Eles) entraram a som de caixa e em ordem
militar nas duas reduções de Santo Antônio e São Miguel, destroçando
índios a machadadas. Os pobres dos índios com isso se refugiaram na
igreja, onde os matavam - como no matadouro se matam vacas -, tomaram
por despojo as modestas alfaias litúrgicas e chegaram mesmo a derramar
os santos óleos pelo chão".
Relativizar os rótulos
Por
mais que a narrativa seja chocante, é papel do professor relativizá-la,
mostrando como ela está impregnada da emoção típica do testemunho em
primeira pessoa e do interesse dos jesuítas em demonizar os sertanistas,
apesar de alguns religiosos terem até participado de bandeiras. A visão
crítica da História nos ensina que não devemos julgar nem bandeirantes
nem jesuítas pelos parâmetros de hoje, mas entendê-los como indivíduos
sujeitos às condições de sua época. Encarar esses personagens como
mocinhos ou vilões rouba-lhes a verdade histórica e a única riqueza que
talvez tenham conquistado - já que, segundo os testamentos da época,
comprovou-se que a maioria morreu pobre : a de ter lutado por interesses
próprios e, por acaso, ajudado a traçar a história de um país.
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Ilustração: Éber Evangelista | | | | |
As bandeiras que mais impactaram a história foram as que alargaram o
território brasileiro, apresaram uma quantidade significativa de índios
ou descobriram ouro - essas últimas responsáveis pelo deslocamento de
grupos que se concentravam no litoral. A maioria foi fruto de ações
particulares, não apoiadas pela coroa portuguesa. No mapa à esquerda,
estão representadas oito grandes bandeiras, todas realizadas nos séculos
17 e 18. Em termos de distância percorrida, a mais impressionante foi a
liderada por Antonio Raposo Tavares (no mapa, em vermelho), que de 1648
a 1651 percorreu 12 mil quilômetros de São Paulo à região de Gurupá, no
atual Pará, para capturar indígenas. Tavares, aliás, foi provavelmente o
bandeirante mais experiente. Entre 1628 e 1633, ele comandou, junto com
Manuel Preto, uma incursão no atual Paraná (em rosa) para destruir
missões jesuíticas em Guairá. Com o mesmo objetivo de capturar índios,
Fernão Dias se embrenhou pelo atual Rio Grande do Sul, em direção a Tape
(bandeiras ilustradas em azul e verde).