A entrevista abaixo foi publicada no dia 04 de maio de 2009.
A descoberta de Luzia, o
mais antigo esqueleto humano até o momento encontrado na América, seria
suficiente para assegurar o ingresso da arqueologia brasileira na maioridade.
Mas o estudo desse fóssil traria ainda duas revelações bombásticas. Sua idade,
estimada entre 11.000 e 11.500 anos, desafiava o modelo hegemônico sobre o
povoamento do continente, chamado de maneira simplificada de Clovis First. Mais espetacular ainda, sua morfologia
craniana nada tinha a ver com a mongoloide, característica dos atuais indígenas
americanos, mas com a negroide, dos primeiros habitantes da África e da
Austrália. Por conta de Luzia, o mineiro Walter Alves Neves, principal
responsável pelo estudo dessa remota ancestral (inclusive pelo simpático nome
que a popularizou), tornou-se uma celebridade internacional. Porém, teve que
sustentar uma guerra prolongada contra os “clovistas”, que dominavam a
arqueologia norte-americana e faziam de seu modelo um dogma opressivo. Graças a
ele e outros, o modelo Clovis First está
hoje desacreditado e propostas de povoamento muito mais instigantes podem ser
debatidas. Professor titular do Departamento de Genética e Biologia Evolutiva
da Universidade de São Paulo, Neves, que acaba de publicar um livro destinado
ao grande público sobre sua aventura científica, falou com muita descontração e
bom humor a Le Monde Diplomatique Brasil.
A COR DE LUZIA.
Diplomatique: Quando pensei em entrevistá-lo, imaginei o
seguinte título para a matéria: “No povoamento da América, o negro chegou
primeiro”. Este tipo de afirmação se sustenta?
Walter
Neves: Pode esquecer. Aliás, tem duas coisas que a imprensa
poderia me ajudar a esclarecer, até porque foi ela que produziu o
mal-entendido. Primeiro: afirmaram que eu teria dito, em algum paper, que os
primeiros americanos vieram diretamente da Austrália para cá. Eu jamais disse
isso. Nunca me passou pela cabeça. Inclusive porque essa tese já havia sido
apresentada por Paul Rivet nos anos 1940, e foi massacrada. A partir de outros
elementos, ele percebeu o mesmo que eu percebi, e propôs uma migração direta.
Não há necessidade dela, porque a gente sabe que essas populações estavam na
Ásia também. Elas podem, perfeitamente, ter entrado por cima, pela região que
corresponde atualmente ao Estreito de Bering. Quando eu digo que os
primeiros americanos são mais parecidos com os australianos e os africanos, não
estou propondo uma migração direta da Austrália ou da África.
Diplomatique: E
a segunda coisa?
Neves: A segunda coisa, na qual você pode me
ajudar muito, é informar que a gente não tem a mais remota ideia da cor da
pele de Luzia e de seu povo. Quando uso
o termo negroide, digo isto a partir do formato do crânio. Não da cor da pele.
Nós não sabemos e nunca saberemos qual era a cor da pele dos primeiros
americanos. Nada contra que fossem negros. Acho perfeito que fossem. Mas
não temos evidência nenhuma.
O TIPO DE MIGRAÇÃO.
Diplomatique: Só
um parêntesis. A Niède Guidon propõe uma migração direta, não é? Ou estou enganado?
Neves: O modelo que ela
mais gosta é o da migração direta da África para cá.
Diplomatique: Via Atlântico?
Neves: Via Atlântico.
Diplomatique: Ainda quero falar da proposta de
Niède. Mas, neste momento, gostaria de voltar ao seu modelo.
Neves: Você
pode explicar perfeitamente o povoamento da América sem recorrer a travessias
oceânicas, porque, antes dos asiáticos do tipo atual, que a gente chama de mongoloides,
populações parecidas com os australianos e africanos estavam presentes na Ásia.
Diplomatique: Os adivasis, que existem até hoje na Índia, poderiam ser descendentes dessas
populações?
Neves: Talvez. Mas a gente sabe que os mongoloides também surgiram a partir das
populações de tipo australiano ou africano por meio de um processo de seleção
natural causado pelo frio intenso.
Diplomatique: Pensei que fossem populações distintas.
Neves: Não. Alguns autores acham que possa ter havido uma contribuição europeia, pelo
Norte. Mas a maioria acredita que a gênese da morfologia mongoloide se deu no
nordeste asiático, a partir dessas populações mais antigas, de morfologia
generalizada.
AS DIFERENCIAÇÕES RACIAIS
Diplomatique: Essa suposta diferenciação teria ocorrido em
que época?
Neves: Isso é muito discutido. Existe pouco material na Ásia para uma datação precisa.
Estima-se que tenha ocorrido por volta de 10 mil anos atrás.
Diplomatique: Tão recentemente assim?
Neves: Muito recentemente. Aliás, vou lhe dizer uma coisa, nós estamos descobrindo,
cada dia mais, que o processo de raciação é muito tardio. Veja o caso dos
famosos Cro-magnons, que são os primeiros europeus. Nós vamos lançar um paper
mostrando que há uma grande identidade morfológica entre os Cro-magnons e os
primeiros americanos. Por quê? Porque o homem surgiu na África. Da África,
espalhou-se pelo mundo. Então, num primeiro momento, o planeta estava coberto
por uma população original de tipo africano. Foi a submissão desses humanos a
diferentes situações ambientais que deu origem ao processo de raciação. Quando
digo que os primeiros europeus, os Cro-magnons, são muito parecidos com os
primeiros americanos não estou afirmando que houve uma migração dos Cro-magnons
para cá. A semelhança vem do fato de que todos nós repartimos um ancestral
comum, que saiu da África por volta de 50 mil anos atrás. O mundo inteiro tinha
essa cepa, que a gente chama de morfologia primitiva ou morfologia
generalizada. As especializações morfológicas, ou seja, o processo de raciação,
ocorreu bem depois.
A CRONOLOGIA
Diplomatique: Vamos pensar em uma seqüência cronológica.
Neves:
Vamos lá. O Homo sapiens surge na África há cerca de 200 mil anos. Alguns
autores acham que possa ter havido uma expansão modesta há 120 mil ou 100 mil
anos. Mas o que todo o mundo fecha mesmo é que nós saímos retumbantemente da
África por volta de 50 mil anos atrás.
Diplomatique: Isso significa que, até há 50 mil anos, não
havia homens fora da África?
Neves: Homens do tipo Homo sapiens não. É claro que sempre existem dissidências, seja
em relação a este, seja em relação a qualquer ponto de vista. Por exemplo, a
Austrália está ocupada há, no mínimo, 45 mil anos. Alguns autores recuam o
povoamento para 60 mil anos. Então, fica complicado você dizer que o homem só
saiu da África há 50 mil anos. Mas, no geral, a grande saída, a saída
retumbante, para todos os lados, ocorreu realmente por volta de 50 mil anos
atrás. Há vestígios humanos na Europa com 36 mil, 34 mil anos. E vestígios na
América com, pelo menos, 12 mil.
Diplomatique: Vamos retomar a cronologia.
Neves
Então, há 200 mil anos, aparece o Homo sapiens na África. Há 50 mil anos, ele
se generaliza pelo mundo. E, provavelmente, há 15 mil anos, começam os
processos de raciação. No caso do nordeste da Ásia, que é o que nos interessa,
os mongoloides devem ter surgido por volta de 10 mil anos atrás. Depois,
entraram na América. A minha contribuição é mostrar que, antes desses
mongoloides entrarem na América, já haviam entrado grupos constituídos por
aqueles Homo sapiens de morfologia generalizada, semelhante à dos australianos
e africanos. Quer dizer que, também na América, entrou esse estrato básico
generalizado dos primeiros Homo sapiens. O que eu digo, em resumo, é que esses
não mongoloides, que entraram na América, deram origem, na Ásia, aos mongoloides.
E que os mongoloides, depois, entraram na América, também.
OS GRANDES DESLOCAMENTOS
Diplomatique: Qual é a sua hipótese para esses grandes
deslocamentos humanos?
Neves: Crescimento
demográfico e competição. Eu não gosto de usar a palavra “migração”. Migrações
lineares, para destinos distantes, são coisas muito raras entre os seres
humanos. O que ocorre, em primeiro lugar, é o crescimento demográfico; com o
crescimento demográfico, surge a necessidade de ocupar novos territórios; com
ocupações territoriais sucessivas, a população acaba se expandindo por vastas
áreas. Você pode dizer que houve uma, duas ou três populações do Velho Mundo
que contribuíram para formar os americanos. Agora, quantas levas migratórias
entraram, isto nós não vamos saber nunca. Porque não houve um processo linear
de migração.
Diplomatique: Foram deslocamentos muito lentos, muito
pequenos, muito pontuais, que se somaram durante um longo período. É isso?
Neves: Exatamente.
Exceto ao longo do litoral. Porque, como o litoral é uma faixa estreita, o
grupo precisa rapidamente se fissionar e dar origem a outro grupo. Fissionar e
criar um outro grupo. Então, as colonizações
costeiras são sempre muito mais rápidas. E, neste caso, já existe uma linha de
migração, um eixo a seguir.
Diplomatique: Dado pela própria topografia.
Neves:
Exato. Pense no Istmo do Panamá, por exemplo. Nele, há pouquíssimos quilômetros
entre as duas costas. Muito provavelmente, quando os grupos humanos chegaram ao
Istmo do Panamá, uns escolheram continuar descendo pela costa do Pacífico,
outros pela costa do Atlântico e outros por dentro da Amazônia. Existem sítios
arqueológicos na Amazônia brasileira com datações de 11.300 anos.
Diplomatique: Com fósseis humanos?
Neves:
Não. Sítios datados por carvão.
Diplomatique: Seu modelo, que se apoia no estudo da
morfologia craniana, poderia ser corroborado pelo rastreamento do DNA?
Neves: Não
necessariamente. Não é preciso supor uma diferença de DNA entre as duas hordas,
porque a segunda originou-se da primeira. Então, ela pode ter conservado as
mesmas imagens de DNA e ter mudado muito a morfologia. É a seleção natural
agindo sobre as mutações.
Diplomatique: Esse raciocínio se aplica também ao Homem de
Neanderthal?
Neves: É
uma outra espécie, com desenvolvimento paralelo ao do homem moderno. De um
mesmo ancestral africano, o Homo heidelbergensis, surgiu, no ambiente tropical
da África, o Homo sapiens, e, nas regiões muito frias do norte europeu, o Homo
neanderthalensis. Essas duas espécies aparecem mais ou menos ao mesmo tempo.
Tanto é que os primeiros Neanderthais clássicos, completamente Neanderthais,
são datados de 180 mil anos. Veja que coisa incrível: locais completamente
distintos, mas com a temporalidade evolutiva muito próxima.
A ROTA PARA A AMÉRICA.
Diplomatique: Quero insistir em um ponto relativo ao
povoamento da América: os dois grandes aportes humanos a que você se referiu, o
dos negroides (vamos chamá-los assim para simplificar) e o dos mongoloides,
teriam ocorrido, ambos, pelo Estreito de Bering?
Neves: Sim, ambos.
Diplomatique: Foram, ambos, deslocamentos pedestres?
Neves: Não
necessariamente. Como sabemos hoje que a América do Norte estava completamente
coberta de gelo, estamos apostando muito na chamada via costeira. Com o
interior congelado, populações dotadas de canoas muito primitivas, fazendo
navegação de cabotagem, podem ter se deslocado ao longo do litoral, chegando ao
noroeste da América do Norte, e, daí, descendo pela costa até a América do Sul.
Isso explica, por exemplo, porque existe um sítio arqueológico de 12.300 anos
no sul do Chile
Diplomatique: A navegação costeira teria facilitado o
deslocamento?
Neves:
Exatamente. A navegação costeira permite uma expansão muito rápida. O sítio
encontrado no Chile está a apenas 60 quilômetros da costa atual. Veja, não
temos nenhuma evidência direta de que houve mesmo essa migração costeira. Mas
está todo mundo apostando nela.
Diplomatique: Porque o interior estava intransitável.
Neves: Sim.
Antes, acreditava-se na existência de um corredor livre de gelo no oeste
norte-americano. Hoje, sabemos que não foi assim. O gelo cobriu tudo. É por
isso que estamos apostando na rota costeira.
Diplomatique: Não bastasse a descoberta do sítio chileno, o
cenário de um interior completamente gelado já poria em xeque o modelo Clovis
First, não é?
Neves:
É...esse modelo que, durante três décadas, os norte-americanos tentaram enfiar
goela abaixo dos sul-americanos.
A TEORIA CLOVIS EM XEQUE
Diplomatique: Qual é a data de Clóvis?
Neves: Até
alguns meses atrás, falava-se em 11.400 anos. Agora, o sítio foi redatado para
algo entre 11.200 e 10.800. Enquanto a idade de Clóvis diminui, surgem outros
achados cada vez mais antigos. Além da descoberta do Chile, acabaram de
encontrar uma “paleobosta” nos Estados Unidos com 12.400 anos.
Diplomatique: Fezes humanas?
Neves: Humanas.
Fizeram a datação: 12.400 anos!
Diplomatique: Para você, isso é ótimo.
Neves: Ótimo,
porque, quanto mais antiga tiver sido a migração para a América, mais provável
se torna que aquela morfologia generalizada de origem africana tenha chegado
aqui também.
Diplomatique: Sabemos alguma coisa sobre a morfologia do
povo de Clóvis?
Neves
Nada. Não tem nenhum esqueleto humano claramente associado ao sítio.
Diplomatique Só restos líticos?
Neves: Restos líticos e da fauna que eles abatiam, processavam e comiam. Não temos a
mais remota ideia da morfologia do grupo humano. Há duas alternativas. Uma que,
de fato, Clóvis seja resultado da segunda ocupação, a ocupação mongolóide. A
outra – apoiada agora pela maioria dos autores – que aqueles grupos de
morfologia generalizada de origem africana tenham descido pela costa do
Pacífico da América do Norte, toda coberta de geleiras, e que, mais ou menos
onde fica hoje a divisa entre os Estados Unidos e o México, uma parte tenha
podido se internalizar, porque lá não havia mais gelo. Na medida em que, devido
à elevação da temperatura, as geleiras foram retrocedendo em direção ao Polo,
as populações que se interiorizaram começaram a subir. Então, vamos dizer
assim, Clóvis seria um rebote dos mesmos grupos que entraram no continente por
volta de 13 mil anos atrás.
Diplomatique: O modelo Clovis First foi virado de cabeça
para baixo.
Neves:
Não é fantástico? Essa interiorização a que me referi teria sido a primeira.
Muito provavelmente, do gelo para baixo, todas as vezes em que houve
oportunidade, eles se interiorizaram. A restrição à costa só vale para o trecho
coberto de gelo. Dali para baixo, eu acho que houve tanto o deslocamento
costeiro quanto a interiorização. O deslocamento costeiro é sempre mais
expresso, porque já existe uma organização linear norte-sul, uma faixa
litorânea, limitada pelas cordilheiras, que facilita demais o movimento. E que,
além disso, oferece recursos extremamente abundantes. Por isso, alguns autores
acham que os primeiros habitantes percorreram todo o litoral do Pacífico para
só depois começarem a se interiorizar. Eu acho que não. Acho que a
interiorização ocorreu sempre que houve oportunidade. Senão a gente não explica
as datas encontradas aqui.
OS VESTÍGIOS NO BRASIL E SUA DATAÇÃO
Diplomatique: Que datas são essas? Quais são os vestígios
comprovadamente humanos mais antigos encontrados no território brasileiro?
Neves: Os
do Vale do Peruaçu, no norte de Minas Gerais, estudados pelo André Prous 8.
Foram datados entre 11 mil e 12 mil anos.
Diplomatique: E a idade de Luzia?
Neves:
Nós não conseguimos estabelecer.
Diplomatique: Não?!
Neves:
Não, porque, para você datar um osso, ele precisa ter conservado o colágeno. Um
osso é, vamos dizer assim, uma matriz cartilaginosa de proteína que passa,
depois, por um processo de mineralização. A mineralização confere a estrutura
final ao osso, mas fica dentro dele um resíduo da matriz de matéria orgânica. É
esse resíduo que responde ao teste do carbono 14. Se o osso perdeu esse resíduo,
se o osso não tem colágeno, não há como datar. Agora, de uns três anos para cá,
apuraram uma técnica para datar dentes humanos. Antes não se fazia isso porque
o dente humano tem menos de 5 miligramas de colágeno e não havia aparelhagem
capaz de datar uma quantidade tão pequena. Agora já existe. Então, eu estou
negociando com o Museu Nacional do Rio de Janeiro para estabelecer
definitivamente a idade de Luzia. Vamos sacrificar um dente dela e rezar para
que dentro dele haja colágeno em quantidade suficiente. Nos ossos não tem
colágeno. Isso nós já sabemos.
Diplomatique: Eu podia jurar que a datação havia sido
feita.
Neves:
Não. O que houve foi um chute calculado. O sítio onde ela foi encontrada, a
Lapa Vermelha 4, é um local de sedimentação extremamente homogênea. Então,
quando escavamos a Lapa Vermelha 4, pudemos fazer um levantamento detalhado dos
objetos. Pela idade dos vestígios encontrados pouco acima e pouco abaixo,
dizemos, com relativa segurança, que Luzia deve ter entre 11.000 e 11.500 anos.
Eu, pessoalmente, me inclino pelos 11 mil. É um chute. Porém, como o material
foi muito bem escavado, e os estratos arqueológicos são todos horizontais,
bonitinhos, eu acho que usar essa referência estratigráfica não foi uma solução
ruim. Mas é claro que seria melhor se nós tivéssemos uma datação direta. Agora,
temos essa chance.
Diplomatique: E será por dente?
Neves: É.
Se o Museu Nacional concordar em sacrificar. Porque a Luzia se tornou um ícone
da pré-história brasileira.
Diplomatique: Não foram encontrados outros fósseis humanos
nesse sítio?
Neves:
Nesse sítio, não. Só a Luzia.
Diplomatique: E os outros fósseis com os quais você
trabalhou?
Neves:
São de outros sítios.
Diplomatique: Foram datados?
Neves: Eu
datei vários. Meu último trabalho publicado apresenta uma relação de 31
crânios. Todos com cerca de 10 mil anos. Posso dizer que 99,99% dos esqueletos
de Lagoa Santa já estão em museus. E que os que nós estamos escavando agora
possuem idades na faixa dos 8 mil aos 10 mil anos, com uma maior expressão ao
redor de 8.500. São todos de morfologia generalizada, não mongoloide.
Diplomatique: Pelo que você está dizendo, em todo o
território americano, há poucos fósseis humanos nessa faixa cronológica fora da
coleção de Lagoa Santa?
Neves:
Tem uma boa amostra na Colômbia, com idades entre 6 mil e 11 mil anos. E, no
México, existem vestígios de cinco esqueletos, com cerca de 10 mil. Todos eles
mostram exatamente a mesma morfologia. Como é que eu vou explicar? Lagoa Santa
e Bogotá são as duas grandes exceções. Foi onde realmente os paleoíndios
sepultaram dezenas e dezenas de pessoas. Recentemente, a Niède encontrou um
fóssil no Piauí. Na época, foi chamado de Zuzu, mas, na verdade, deveria ser
Zulu, porque o esqueleto é de homem, não de mulher. Tem cerca de 9 mil anos. Nós
mostramos, a Niède e eu, que esse fóssil possui exatamente a mesma morfologia
generalizada de Luzia e dos demais esqueletos de Lagoa Santa. O grosso do
material de Lagoa Santa já estava nos museus, mas ninguém nunca havia
comprovado a antiguidade dele. Incrível, não? Para construir uma cronologia
confiável para esses esqueletos, ou datando diretamente ou reescavando os
sítios, gastamos cerca de 2 milhões de dólares. Isso mostra que, para fazer
pesquisa competitiva, você tem que ter muito dinheiro. Se não fosse pela Fapesp
9, nós não teríamos como encarar os norte-americanos.
A TEORIA DE NIÈDE GUIDON
Diplomatique: Neste ponto, é inevitável voltar a Niède
Guidon. Porque você fala em navegação de cabotagem. E ela propõe a travessia do
Atlântico. Você trabalha durante duas décadas, gasta 2 milhões de dólares,
enfrenta o maior bloqueio dos americanos para inserir os negroides no modelo e
fazer a datação recuar em mil, dois mil anos. E ela sustenta que os primeiros
habitantes chegarem diretamente da África, há...
Neves: Cem
mil anos! Quando conversamos pela última vez, foi mais ou menos em cima desta
data que ela se posicionou. Ela encontrou pedras que acredita terem sido usadas
em fogueiras e que foram datadas em cem mil anos. Então, acha que tem
evidências suficientes para propor um povoamento nessa faixa cronológica. Eu
fui, durante 20 anos, o inimigo público número um das tais ferramentas líticas
e fogueiras da Pedra Furada. Mas, em 2005, ela me convidou para visitá-la.
Fomos eu e o geoarqueólogo do laboratório. Pedi para ver todos os achados
líticos de Pedra Furada e ela me mostrou. Como tive uma boa formação em
tecnologia lítica no início da carreira, eu me sentia preparado para ver
aqueles objetos. E, realmente, saí 99% convencido de que se tratava de
ferramentas feitas por humanos e que os carvões eram, de fato, restos de
fogueiras. Isto até um nível de 32 mil, 34 mil anos atrás.
Diplomatique: Mesmo que fossem 20 mil anos, isto já seria
uma revolução!
Neves: É.
Mas faltava 1% para eu ter certeza. Uma coisa que eu nunca entendi foi por que
a Niède não convidou o maior especialista em tecnologia lítica para examinar
seus achados. Ela podia ter feito isso há muito tempo: esses especialistas
estão na França e ela tem as melhores relações com a arqueologia francesa. No
ano passado, finalmente, veio um dos grandes especialistas franceses, viu o
material e também chegou à conclusão de que eram humanos. Então, agora, eu
estou 99,99% convencido. Mas, honestamente, não quero nem pensar no assunto.
Porque é uma mudança tão grande de paradigma que eu não sei se tenho físico
para aguentar.
Diplomatique: Pois, se isso for verdade...
Neves: Eu
posso jogar fora tudo o que fiz! Nós estamos agora trabalhando com um esqueleto
humano que ela achou recentemente e que desconfia que tem mais de 25 mil anos.
Diplomatique: Ah, então existe esse esqueleto?
Neves:
Existe. Eu mandei datar duas vezes. Não tem colágeno. E também não tem dente.
Mas, muito próximo do esqueleto, foi encontrada uma mandíbula de veado. Estão
datando. O resultado deve chegar a qualquer momento. Porém, a gente percebeu
que o processo de preenchimento da caverna foi muito mais complexo do que o
pessoal da Niède pensava. Então, o fato de uma peça estar ao lado da outra não
significa, necessariamente, que tenham a mesma data. Mas estamos estudando.
Porque, se realmente conseguirmos provar, mesmo que só estratigraficamente, que
esse esqueleto tenha, não precisam ser 25 mil anos, basta que sejam 13 mil,
isso já será um arraso, você me entende?